É célebre a passagem em que o teólogo católico Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), em suas Confissões (397-398 d.C.), se vê enredado pela fugacidade do tempo no momento em que procura capturá-la: “Se ninguém me pergunta o que é o tempo, eu sei o que ele é; mas, se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada.” Com uma foice na mão direita e a ampulheta do nosso corpo na mão esquerda, o tempo já não diz: “Decifra-me ou devoro-te.” Sob seu capuz negro, ele nos sussurra: “Decifra-me enquanto te devoro.”
Diante do cavalo indômito do tempo, que faz a poeta russa Marina Tsvetaeva? Em O Poeta e o Tempo (Editora Âyiné, tradução de Aurora Bernardini), Tsvetaeva decide cavalgá-lo. Quando os críticos e leitores perguntam à poeta por que seus poemas são tão diferentes, Tsvetaeva (1892-1941) surrupia a ampulheta da mão de areia do tempo e lhes responde: “Porque os anos são diferentes. Esperar de um poeta textos iguais em 1915 e em 1925 é a mesma coisa que esperar que eu tenha o mesmo rosto em ambas as ocasiões. ‘Por que você mudou tanto em dez anos?’ Ora, porque o tempo passou!”
A ousadia poética de Tsvetaeva diante de Cronos, o deus do tempo como vida e morte, torna-se ainda mais intrépida (e temerária) diante da História, a deusa do tempo como vontade de poder e emancipação. Sob o punho despótico de Stalin, a vida e a obra de Tsvetaeva testemunhariam, tragicamente, o tempo histórico como uma profunda imbricação entre vontade de poder e emancipação nos primórdios da União Soviética.
Em diálogo com o poeta russo Vladimir Maiakovski (1893-1930), entusiasta de primeira hora da Revolução de 1917, Tsvetaeva também se pergunta se, para a criação da arte revolucionária, é preciso haver forma revolucionária. Ora, como determinar se forma e conteúdo politicamente revolucionários são artisticamente radicais? Para Tsvetaeva, “o fato de Lunatcharski (1875-1933) ser um revolucionário não o tornou um poeta revolucionário, assim como eu não me tornei uma poeta conservadora”, escreve. “Poeta da revolução e poeta revolucionário são duas coisas diferentes. Encontraram-se apenas uma vez em Maiakovski, pois ele é um revolucionário poeta, o milagre de nossos dias. Mas existem também contramilagres – o escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848), que era contrário à Revolução Francesa, ainda assim preparou uma revolução na literatura, a do Romantismo. O que teria acontecido caso a Revolução o tivesse pego para escrever panfletos políticos?”
Para permanecermos em solo literário russo, analisemos brevemente o caso do escritor Fiodor Dostoievski (1821-1881) à luz da ousadia poético-política de Tsvetaeva.
Em termos políticos, seria possível dizer, não sem debates acalorados, que Dostoievski passou da esquerda para a direita. Em fins da década de 1840, o jovem Dostoievski foi condenado a trabalhos forçados na Sibéria por fazer parte de um círculo revolucionário que lutava pelo fim da servidão e pela implementação do socialismo na Rússia. Já ao longo da década de 1870, o velho Dostoievski publica textos jornalístico-panfletários, em seu Diário de um Escritor, defendendo o direito russo de submeter a Polônia e o Cáucaso sob o cetro do czar – em relação ao Cáucaso, Dostoievski transforma o imperialismo russo em uma cruzada cristã contra os seguidores de Maomé.
Em termos literários, a situação não é menos contraditória. Autor de Crime e Castigo (1866), Dostoievski traz à tona o jovem niilista Raskolnikov, cujos homicídios, diante dos questionamentos radicais em relação à existência de Deus, pretendem matar o “Não matarás”. (11.º Mandamento: “Se Deus não existe, tudo é permitido.”) Por um lado, a violência profana de Raskolnikov seria a parteira de um tempo histórico radicalmente novo, como queriam os jovens Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (1848). Por outro lado, o fato de Raskolnikov ter cometido dois homicídios ao invés de um, como fora inicialmente planejado – a irmã da usurária Aliona Ivanovna acabou aparecendo, inusitadamente, momentos depois de Raskolnikov ter rachado a cabeça da vítima a machadadas –, pode ser lido como uma admoestação de que, uma vez cruzada a fronteira do “Não matarás”, já não haveria limites para o choro e o ranger de dentes. (À luz da suma letalidade stalinista, a admoestação de Dostoievski nos faz compreender o parto do novo tempo também como um aborto histórico.)
Como o espectro de Stalin rondou os suicídios tanto de Maiakovski quanto de Tsvetaeva, entrevemos que as alternativas “revolução ou reação” e “vanguarda ou conservadorismo” não compreendem a arte avançada que, ao se imbricar aos dilemas de seu tempo, ilumina feridas históricas ainda não cicatrizadas – feridas que a arte, para além do dogmatismo e da filiação estritos, sabe não poder curar em si e por si mesma.
*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com estágio doutoral junto à Northwestern University (EUA)
O Poeta e o Tempo Autora: Marina TsvetaevaTradução: Aurora BernardiniEditora: Âyiné 152 páginas R$ 12
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