Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que tem feito sucesso desde seu primeiro livro, lançado em 1992. Com seu “Quarteto Napolitano”, publicado entre 2011 e 2014, conquistou o mercado internacional. Foi traduzida em 40 países, vendeu 1 milhão de exemplares na Itália e 2,6 milhões em países de língua inglesa. Está sendo publicada no Brasil pela Biblioteca Azul, mas sem a entusiástica recepção que recebeu nos demais lugares onde aportou.
Há anos, especula-se na Itália quem se esconderia atrás desse pseudônimo, mas sua editora vinha conseguindo driblar as investigações. Nessa semana, Claudio Gatti, jornalista italiano, parece ter descoberto o segredo, apontando Anita Raja, uma tradutora de alemão, como a incógnita escritora. Ao contrário das diversas tentativas feitas anteriormente para descobrir sua identidade, através de pesquisas linguísticas e estudo comparativo de estilo entre os vários suspeitos, e para tanto foi até mesmo criado um software por professores da La Sapienza, a universidade de Roma, Gatti foi mais objetivo – seguiu a trilha do dinheiro. Ou seja, viu as folhas de pagamento da editora e constatou que Anita Raja tem recebido vultosas somas que coincidem exatamente com os picos de venda dos livros de Elena Ferrante. Passo seguinte, constatou que Anita Raja e seu marido, o também escritor Domenico Starnone, fizeram grandes investimentos imobiliários, comprando luxuosos apartamentos em Roma e uma propriedade na Toscana. Embora a editora e a própria escritora não tenham se pronunciado a respeito dessas informações, elas percorrem céleres os cadernos literários do mundo, desde que a matéria de Gatti saiu quase simultaneamente em quatro importantes jornais de diferentes países (o norte-americano The New York Times, o italiano Il Sole, o alemão Frankfurter Allgemeiner Zeitung e o portal investigativo francês Mediapart), provocando reações curiosas.
Há anos se especula sobre a identidade de Ferrante e, agora que é descoberta, hipocritamente se censura o jornalista por invasão de privacidade, como se não se pudesse falar da fortuna financeira da escritora – que afinal não deveria surpreender ninguém – e, sim, apenas de sua também rica fortuna crítica.
Em entrevistas dadas por escrito, arranjadas por meio de seus editores, Ferrante muitas vezes antes explicara porque mantinha sua identidade em sigilo, alegando que somente assim sua produção estaria a salvo das pressões sociais e pessoais que inevitavelmente apareceriam caso fosse desvendada. Isso a deixaria livre para se entregar às questões propriamente literárias.
Talvez seja um tanto ingênuo acreditar piamente em tais argumentos. Na medida em que vivemos numa época na qual se vampiriza a vida alheia, celebridades vazias e fugazes alimentam uma lucrativa indústria de mexericos e factoides que misturam público e privado, alguém que se recusa a entrar nesse rodamoinho como Ferrante paradoxalmente chama mais a atenção, desperta ainda mais a curiosidade, o que pode ser uma boa jogada publicitária.
Desde sempre, o grande público teve uma grande curiosidade para entender de onde os escritores tiram o material de suas obras. Freud cita o cardeal Ippolito d’Este que perguntou a Ariosto de onde ele havia tirado as histórias de Orlando Furioso. Acredita-se que conhecer as peculiaridades da vida do escritor daria a chave para a compreensão de sua criatividade. É uma ilusão, pois as pessoas podem passar por experiências semelhantes ou mesmo idênticas sem que isso desperte nelas a capacidade criativa. É uma curiosidade compreensiva, pois a criatividade é um dom inexplicável, que desperta admiração e inveja.
A invenção de uma identidade fictícia pode ser ampliada literariamente, como fez Ferrante ao escrever Frantumaglia, uma autobiografia ficcional. Ali diz que sua mãe era uma costureira napolitana simples e corajosa, e que toda a família teve de enfrentar grandes dificuldades para sair da pobreza e se mudar para um grande centro urbano. Na verdade, Anita Raja, a verdadeira Ferrante, é filha de mãe judia de origem polonesa, que teve grande parte da família dizimada no Holocausto. A mãe era professora e se casou com um magistrado napolitano, tendo, por essa razão, morado em Nápoles alguns anos. Assim, a família do pai seria mais próxima do universo descrito no quarteto napolitano de Ferrante/Raja, pois o drama judeu de perseguição, fuga e aprisionamento em campos de concentração próprios da família de sua mãe não aparece em sua obra.
A polêmica em torno da identidade de Ferrante é particularmente interessante num momento em que a autoficção seduz tantos escritores. Como entender a diferente forma de lidar com o passado, a memória, os inevitáveis traumas da infância, da vida? Por que alguns os expressam de forma direta, quase sem artifícios simulatórios – como na autoficção – e outros o fazerem debaixo de mil disfarces, deslocamentos, condensações, tal como ocorre com os mecanismos do sonho? Qual das duas formas mostraria uma melhor elaboração dos traumas vividos? Evidenciariam elas diferentes aptidões sublimatórias?
O escritor está profundamente envolvido com aquilo que escreve, tudo diz respeito a ele mesmo, mas isso não quer dizer que esteja necessariamente ligado a sua biografia. Ele pode escrever sobre situações muito diferentes das que viveu, mas sempre haverá no texto algo – um detalhe, um personagem, um acontecimento, um elemento secreto somente por ele conhecido – que o remete a pensamentos e afetos importantes que o obsedam e que ele sente necessidade de escrever para simultaneamente deles se livrar e guardá-los definitivamente, transfigurados em literatura.
Elena Ferrante é Anita Raja. E daí? Faz muita diferença saber disso? Talvez o empenho em desvendar a identidade da escritora encobrisse aquela curiosidade mais fundamental apontada por Freud, o desejo de descobrir a fonte da criatividade, o saber por que somente alguns podem criar enquanto a maioria disso está privada. Elena Ferrante é Anita Raja, mas o mistério continua.
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