Uma comoção marcou o funeral da escritora Patricia Highsmith, em 1995 - câmeras de uma TV alemã disputavam espaço com amigos e admiradores que lotaram a pequena igreja da cidade suíça de Tegna, onde o corpo foi cremado. Tributo fúnebre digno de uma celebridade que, no entanto, era praticamente desconhecida daqueles presentes, pois Highsmith, apesar de considerada uma das maiores escritoras do romance policial de todos os tempos, se manteve distante e misteriosa até sua morte. Foi em busca dessas verdades encravadas que a dramaturga americana Joan Schenkar trabalhou durante oito anos em pesquisas até finalizar A Talentosa Highsmith, portentosa biografia que a editora Globo lança no dia 7 de abril.Não se trata de um relato que segue a ordem cronológica - com tanto tempo de convivência, Joan preferiu compartilhar com o leitor suas dúvidas e descobertas. Assim, ao longo dos inúmeros parágrafos, descobre-se que Pat, como carinhosamente a chama, revelava-se, ainda que disfarçadamente, ao longo de suas histórias. "Eu não tinha a exata noção da extraordinária vida secreta de Pat até entender o quão pessoal são seus romances", conta a biógrafa, que respondeu por e-mail às perguntas do Estado. "Ela utilizou todos os detalhes de suas obsessões e de seus inúmeros casos amorosos com outras mulheres como inspiração para sua escrita e para dar um colorido aos seus personagens. Pat foi a mais autobiográfica das romancistas e também a mais misteriosa."Joan teve acesso a todos os documentos pessoais da escritora, como 250 manuscritos inéditos, 38 cadernos de anotações e 18 diários. Também contou com a boa vontade dos amigos de Patricia, que lhe forneceram detalhes preciosos. Assim, descobriu novas facetas da autora que não tecia tramas rocambolescas e assassinatos intrincados como Agatha Christie - suas histórias de crimes estúpidos e sem sentido, por mais banais que possam parecer à primeira leitura, provocam angústia no leitor justamente por serem mais próximas da vida real. Basta conferir seu romance mais conhecido, O Talentoso Ripley."Prefiro escrever livros com começos lentos, até mesmo sossegados, em que o leitor vai acabar conhecendo a fundo o herói criminoso e as pessoas ao redor dele", disse, certa vez.Uma característica que a marcou desde o início da carreira. "Pat publicou Pacto Sinistro em 1950, quando estava com 29 anos, e, desde Dostoievski, não se viam personagens tão assolados pela dúvida e com tal senso de dualidade psicológica", observa a biógrafa, referindo-se à história levada ao cinema por Alfred Hitchcock. "Leitores mais exigentes e críticos da época ficavam desconcertados pelas correntes psicológicas anormais encontradas nos romances de Patricia. E o fato de que ela apresentou forçosamente Tom Ripley como um 'herói criminoso' era algo inteiramente novo."Decifrar as entrelinhas dos textos de Patricia Highsmith é como desvendar sua própria intimidade. Joan observa que a escrita se espalha por estilos, interroga os gêneros, oferece a anatomia da culpa mais minuciosa que se pode encontrar na literatura contemporânea e ataca seus leitores exatamente onde eles se identificam. "Em quase tudo que ela escreveu, as boas intenções se corrompem natural e automaticamente, a culpa com frequência aflige os inocentes e não os culpados, e a vida é uma armadilha sufocante da qual mesmo um especialista em se esquivar como o talentoso Ripley não pode encontrar uma saída elegante."E todo esse universo sufocante é banhado por um estilo inspirado no que se pode chamar de Grande Arte: um profundo conhecimento da cultura como caminho menos doloroso para a redenção. Assim, um sorriso regado a sangue é acompanhado de uma recomendação para se ler Henry James; a cena de uma faca girando inquieta em uma mão trêmula é amenizada pela leitura de poemas de Auden; e um almoço perturbado por uma suspeita terrível é contrabalançado pela imagem de um homem chorando no túmulo de Keats."Nenhuma das narrativas de Patricia se presta como leitura para a hora de dormir", alerta Joan. "O trabalho dela pertence ao fundo da sacola do Sandman, onde todos os sonhos ruins ficam guardados. Enquanto muito literalmente sua escrita lhe preserva a própria vida, ela de maneira bem figurada nos coloca em risco."Em seu dia a dia, porém, a escritora revelava-se uma mulher reservada. Adoradora de gatos, viveu quase sempre solitária ao lado dos felinos, mantendo uma espartana rotina de trabalho, que compreendia muitas anotações e a exigência de produzir ao menos dez páginas por dia. A origem de sua perturbação vinha especialmente da péssima relação que sempre manteve com a mãe, Mary - elas viviam um amor simbiótico, pois não conseguiam se distinguir uma da outra em seus sentimentos mais profundos. Enquanto Patricia tinha horror da carreira fracassada e do comportamento irracional da mãe, essa, por sua vez, não suportava a "deslealdade" da filha e suas ligações com outras mulheres. Tal mistura de fel transbordava na literatura de Patricia."Pat era uma mulher para quem o amor fazia pensar em morte, em assassinato", comenta Joan. "Uma razão para seu trabalho ser com tanta frequência caracterizado como 'amoral' é que a desordem moral que o amor criava em sua vida sempre ia parar em seus romances."Patricia relacionou-se com diversas mulheres, a maioria catalogada em fichas descobertas por Joan Schenkar. Lá, a escritora classificava suas amantes por categorias e falhas de caráter, características que também seriam incorporadas à sua escrita.Em suas buscas, a biógrafa fez uma descoberta extraordinária: durante sete anos, antes mesmo de se tornar famosa como romancista, Patricia Highsmith escreveu secretamente para clássicos dos quadrinhos americanos, nos quais a figura do alter ego - basta pensar em Superman e Clark Kent - era sua marca registrada. "Ao se compreender a profunda conexão que havia entre sua vida e a arte, descobre-se que o maior prazer oferecido por Patricia em seus livros é da descoberta dos 'crimes' que ela ocultava em seu dia a dia."
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