A moda popular brasileira parece ter sido “descoberta” pelos franceses nas últimas semanas. Em junho, a Vogue francesa publicou a reportagem “Tudo o que você precisa saber sobre a tendência Brazilcore”. A matéria explica no que consiste o estilo, que ganhou destaque no Brasil no ano passado, com a Copa do Mundo e, segundo a publicação, é tendência para o verão do hemisfério norte (que começou em junho).
O termo Brazilcore repercutiu como uma trend (termo usado nas redes sociais para se referir a tendências) no Tiktok. Trata-se de um estilo que adota roupas e acessórios com as cores do Brasil ou símbolos que remetem à bandeira brasileira. O uso dos hashtags #brazilcore, #braziliancore, #brazilcorefashion nas redes ultrapassa 500 milhões de menções.
A publicação foi questionada por internautas daqui, uma vez que não mencionou personalidades e nem marcas brasileiras. As referências citadas são a cantora espanhola Rosalía, as modelos estadunidenses Emily Ratajkowski e Hailey Bieber e a francesa Tina Kunakey.
No post da revista no Instagram, as supermodelos e estrelas estrangeiras não só vestem camisetas e acessórios verdes e amarelos simples, que parecem comprados em um camelô: elas aparecem sentadas em cadeiras de plástico em boteco de rua, comendo pururuca ou tirando selfie com uma latinha de Guaraná.
Neste texto você vai conferir:
- O que é o Brazilcore
- Como essa tendência começou nas periferias do Brasil
- O que essa movimentação da tendência brasileira na Europa representa
O que é e como surgiu o Brazilcore?
O termo “core”, principalmente em trends de moda nas redes sociais, é usado para designar uma estética. No Tiktok, por exemplo, algumas tendências já surgiram e, rapidamente, perderam espaço para novas, como Barbiecore (que se assemelha à boneca Barbie, com a predominância da cor rosa), Fairycore (que se inspira no visual de fadas), entre outras.
O Brazilcore já foi questionado por pesquisadores e produtores de conteúdo de moda da periferia no segundo semestre de 2022, quando a mídia brasileira passou a atribuir o surgimento dessa tendência a influenciadoras de moda no Tiktok, como Malu Borges e Livia Nunes, que possuem mais de um milhão de seguidores nas redes sociais.
Na prática, o estilo surgiu nas periferias do Brasil. É o que explica o pesquisador especialista em hábitos de consumos periféricos Wes Xavier, morador do Grajaú, São Paulo:
“O assunto vai para além de apropriação. Existe um processo de desumanização das narrativas periféricas, onde quem as criou conta outras histórias sem levar em consideração o começo e meio, ou o fim delas.”
Wesley explica que, nos primeiros meses do segundo semestre de 2022, muitos influenciadores brasileiros alegaram que usar essa camiseta era uma forma de ressignificar o que, em 2018, foi visto apenas como símbolo de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
“Porém, a periferia nunca deixou de utilizar essas roupas. Diferentemente de uma visão nacionalista, ela representava a possibilidade de sonhar, de se imaginar e vislumbrar locais de protagonismo diferentes dos pré-determinados aos favelados. Pensar futebol e cultura nas periferias brasileiras é pensar caminhos possíveis para uma vida melhor”, explica.
Ele acrescenta: “Esse movimento sempre esteve ao alcance dos meus olhos. Diante da minha janela, do meu espaço de trabalho, vislumbro a periferia. Nela, diversos corpos carregados dessa essência transitam no cotidiano, e não em passarelas ou veículos de comunicação. Eles estão nas ruas”.
Mayra Souza, modelo, designer e produtora de conteúdo sobre moda periférica concorda. “Muito antes de ter esse nome eu já via no meu bairro, nas ruas da favela, e nunca foi considerado fashion. Mas, desde que pessoas de fora começaram a usar, aí virou trend”, afirma.
Mayra, que mora no Capão Redondo, em São Paulo, sempre quis trabalhar com moda, mas, por não se ver representada na área, acreditava que essa era uma realidade muito distante da sua.
Foi a partir da faculdade de Design Gráfico, onde ela fez um TCC sobre tipografia vernacular (tipos de letras muito populares nas periferias) que ela percebeu a potência de produzir conteúdos sobre cultura periférica. Ela analisa o impacto da trend Brazilcore na moda da seguinte forma:
“Alguns artistas internacionais como a Hailey Bieber e a Dua Lipa, em suas passagens pelo Brasil, utilizaram a camisa verde e amarela (...) Nas últimas semanas de moda, as cores estavam também presentes e isso é algo bom, trazer a visibilidade para o Brasil, enquanto potência que somos. Só que, quando esvaziam o significado real por trás, acaba invisibilizando os verdadeiros percursores, pois os corpos modelos, quando buscamos por essa estética, não são os pretos e periféricos”.
Moda brasileira na Europa
“O protagonismo precisa estar direcionado para a gente, como foi o caso do Je M’appelle Brasil”, reitera a designer, mencionando um projeto desenvolvido pelo estilista Samir Bertoli.
No mesmo mês da publicação da revista francesa, as ruas de Paris receberam o projeto brasileiro de streetwear (termo que se refere a moda urbana, de rua) Je M’appelle Brasil. Samir reuniu seis marcas nacionais, Carnan, Mad Enlatados, Class, Pace, Sufgang e Quadro Creations, para apresentá-las ao mercado europeu entre os dias 22 e 24 de junho.
Samir, que vive em Pirituba, São Paulo, reflete que, apesar do notório interesse dos franceses que frequentaram o showrom, a matéria de revista francesa é, para ele, um reflexo da percepção que os europeus ainda têm do Brasil. Para ele, a trend Brazilcore é, na verdade, uma “caricatura do que os gringos acham que é ser brasileiro”.
O evento contou com a apresentação do trapper paulista Kyan, o que também atraiu a visitação de brasileiros em Paris e repercutiu na imprensa daqui. O estilista teve essa ideia no ano passado, quando percebeu a falta de conhecimento de muitos franceses em torno da cultura brasileira.
“Para minha surpresa, eles não conheciam nada. Conheciam Neymar, futebol, Rio de Janeiro e Carnaval. Meu objetivo foi dar o pontapé inicial, para inserir a moda e subcultura brasileira, de forma humilde. O projeto foi desenvolvido em três meses. Então, apesar de ter sido muito corrido, eu sabia que queria que isso fosse um marco na história da moda, do streetwear brasileiro, como primeiro pontapé global para começar mostrar o que produzimos por aqui”, explicou.
“É preciso entender que esse estilo do ‘core’ é um arquétipo, um estereótipo. O verde e amarelo é bem caricato. Olhei isso no Tiktok e pensei: ‘Estão brincando de se vestir de brasileiro’. A estética, de verdade, surgiu na periferia, com roupas de time. Mas, camisa de time nunca foi artefato de moda para elite, era atrelado a uma falta de entendimento estético, de não saber se vestir”, reitera.
“De modo geral, eles [franceses] enxergam a moda no Brasil nessa mesma superficialidade, do estereótipo das cores, não imaginam que existam culturas profundas em casa estado. Enxergam aqui como moda de praia, chinelo, no arquétipo de um país tropical”, analisa.
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