O clima de incerteza e gravidade se reflete nas passarelas da Semana de Moda de Paris, que termina esta semana, com modelos desfilando com peças que remetem à coletes à prova de balas e cores escuras, com poemas e canções pacifistas tocando ao fundo.
Alguns participantes expressaram seu desconforto com um evento que premia a frivolidade e a alegria de viver, mas a Semana de Moda inesperadamente fez jus ao momento.
Os desfiles tiveram que ser vividos "com gravidade", pediu o presidente da Federação Francesa de Moda, Ralph Toledano.
Embora as coleções tivessem sido desenhadas meses antes, os criadores privilegiaram as peças mais "protetoras" e uma estética solene.
"Um momento grave"
"O mundo vive um momento grave há muito tempo, a moda integrou esse sentimento de seriedade. Está impregnada do cheiro do tempo", disse à AFP o historiador da moda Olivier Saillard.
A Dior apresentou, por exemplo, roupas "de proteção, muito apropriadas, quase premonitórias", explicou.
A marca de luxo francesa introduziu airbags na forma de espartilhos ou coletes. Um vestido cinza evocava a armadura do passado, com ombreiras e tornozeleiras para proteção.
A moda já viveu dois anos difíceis, de introspecção, por causa da covid-19, considera a estilista italiana da Dior feminina, Maria Grazia Chiuri.
"Há muita introspecção. Como associar beleza, estética e proteção, nestes tempos?", explicou a estilista à AFP.
A guerra na Ucrânia "está muito mais próxima de todos nós. Mas o mundo já estava em guerra. A covid foi outra guerra (...), vivemos meses extremamente difíceis", disse.
A Balmain também apresentou espartilhos acolchoados, criações que pareciam coletes à prova de balas, e escudos dourados.
"Minha coleção pode parecer inspirada nas grandes manchetes, tão angustiantes (...). Mas é claro que uma reação tão rápida não teria sido possível", reconheceu o estilista da Balmain, Olivier Rousteing.
O belga Anthony Vaccarello, diretor artístico da Yves Saint Laurent, rompeu pela primeira vez com sua estética "sexy glam" para apresentar um desfile poético, aos pés da Torre Eiffel, que sugeriu "um momento de Reflexão".
Em sua coleção, o pretos, os vestidos longos, o corte de smoking com calças e suntuosos casacos de peles artificiais se destacam. A provocação ficou para trás.
Stella McCartney voltou a Paris exibindo seu compromisso quase lendário com o bem-estar dos animais. Sua proposta para as mulheres é com cores alegres, mas não há vestígios de couro, nem de materiais que não cumpram os rígidos controles ambientais.
Seu desfile começou com algumas palavras do ex-presidente americano John F. Kennedy e foi encerrado com a música de John Lennon e Yoko Ono Give Peace a Chance.
O japonês Yohji Yamamoto apresentou roupas que cobrem as mulheres da cabeça aos pés, com camadas de tecido que se sobrepõem, dando a impressão de temporalidade, de precipitação.
O americano Rick Owens, acostumado com desfiles de tom apocalíptico, apresentou um espetáculo acompanhado da Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler, um momento onírico e solene.
A névoa artificial cedeu o espaço em sua passarela para silhuetas em ternos cinza extralongos ou grandes anoraks, novamente acolchoados.
"A questão da proteção esteve muito presente esta semana. O mesmo aconteceu em Londres", disse à AFP Dana Thomas, jornalista americana e autora de "Fashionopolis".
Poemas e canções
Um momento especial foi o desfile da Balenciaga, imaginado por Demna, um criador georgiano que fugiu de outra invasão russa anos atrás.
Foi uma grande declaração de amor e apoio à Ucrânia, com um poema recitado em ucraniano, camisetas nas cores de sua bandeira e uma nota explicativa alertando que a moda “perdia seu direito de existir” durante a guerra.
As modelos desfilaram sobre neve, algumas seminuas, em uma referencia aos refugiados.
A Louis Vuitton também aproveitou as cores da bandeira ucraniana, amarelo e azul, para uma de suas criações: uma camiseta extralonga, por cima de uma saia elegante e esvoaçante.
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