Desventuras matinais: navegando pelo enigma das torneiras modernas

‘Não sei em que momento fazedores de torneiras se tornaram designers e decidiram que era melhor não ter nem F, nem Q e muito menos marcas e cores em cada torneira’

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Foto do author Alice Ferraz

Na casa em que cresci com meus irmãos e irmãs, as torneiras dos banheiros traziam um F e um Q. No F, uma bolinha azul; no Q, uma vermelha. Simples assim. Duas torneiras, cada uma sinalizando sua básica função de informar o que esperar de cada uma. Expectativas alinhadas. Dividíamos na época um banheiro no final do corredor; as meninas dormiam em um quarto e meu irmão mais velho em outro. Na correria da ma0znhã, era imprescindível ver as letras e as cores para evitar se confundir e se queimar na água quente da pia. Na torneira do chuveiro, no entanto, as funções estavam trocadas, então a quente era fria e a fria, quente. De qualquer forma, decoramos rapidamente suas novas funções e sabíamos manejá-las com precisão.

Alice Ferraz Foto: Juliana Azevedo/Divulgação

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Bem, não sei exatamente em que momento fazedores de torneiras se tornaram designers e decidiram que era melhor não ter nem F, nem Q e muito menos marcas e cores em cada torneira. Presumo que acharam as letras e cores cafonas. Ficamos então à mercê de uma contínua adivinhação. Enquanto escrevo esta crônica, estou em Nova York para três dias de trabalho. Desde o primeiro dia, notei a pia com suas lindas e enigmáticas torneiras, assim como o belo chuveiro, que, para minha maior confusão, não tem apenas duas, mas, sim, quatro torneiras, cada uma com sua função que deve ter sido pensada com precisão sem nunca, no entanto, se predispor a nos contar de qual se trata.

Primeira manhã, abro a primeira torneira para o banho e nada. Abro, então, a segunda: também nada. Sei que algo acontecerá inesperadamente, tenho medo, fecho as duas. Pelada e com frio, olho fixamente para elas. Estou sem óculos, não enxergo nenhum sinal aparente, saio do box em busca dos óculos, volto, examino cada pedacinho do nobre e bem desenhado metal do banho sem encontrar realmente algo que mostre o que esperar. Tenho pensamentos sobre minha inteligência: será que sou a única que não lida bem com torneiras? Resolvo seguir minha intuição, erro novamente, a terceira torneira abre a água gelada da banheira onde o chuveiro está instalado. Pés na água fria, sigo para última tentativa e um jato de água pelando escorregue pelo meu cabelo, preso no topo da cabeça depois de uma hora de escova no salão no dia anterior. Grito só mesmo para colocar para fora alguma indignação contra minha então inimiga, a torneira, e seus sádicos criadores.

Sigo abrindo mais e menos até encontrar a temperatura certa da água – temperar a água, como dizia minha mãe. Sei neste momento que nos próximos três dias não saberei qual abri e qual fechei primeiro. Sei que provavelmente teremos a mesma saga matinal. Faço, em vão, um esforço para lembrar o que fiz de certo e errado. Banho tomado, esqueço a aventura, até o próximo banho.

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