Muso híbrido

Desde 1973, Ney Matogrosso usa maquiagens, requebrados e figurinos brilhantes para fluir livremente seus desejos sem imposições. Hoje, aos 79 anos, mantém vivo seu espírito desrepressor e não vê a hora de a pandemia acabar para voltar à turnê Bloco na Rua

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Em tom de azul monocromático, dos pés ao pescoço, Ney Matogrosso abre a porta de sua cobertura no Leblon, onde mora desde 1993, residência em que se fixou após ter perdido Cazuza e Marquinhos, dois de seus grandes amores arrastados na mesma enxurrada da epidemia da aids que levou outros vários amigos entre as décadas de 1980 e 1990. O encontro inicial, ainda constrangido diante dos protocolos da pandemia de um outro vírus, o da covid-19, revela o que Ney tem sentido mais falta nesses tempos: o contato físico. “Meu impulso é beijar, abraçar. Você entrar, por exemplo, e a gente nem se tocar... Isso me deixa desnorteado”.

A pandemia restringiu não só os abraços, os beijos e o ir e vir de Ney e milhões de brasileiros, presos à força em casa na quarentena. Interrompeu também sua turnê Bloco na Rua, que estava apenas começando e já tinha datas fechadas em Paris, Amsterdã, Berlim, Inglaterra e Nova York. O trabalho foi indicado para o Grammy e será continuado assim que as condições permitirem. Ao contrário de outros artistas brasileiros, Ney em nenhum momento cogitou surfar na onda das lives. O motivo é o mesmo que o desnorteou no confinamento: a ausência de gente. “Não gosto. É muito frio”.

Ney Matogrosso veste camisa The Paradise Foto: Jorge Bispo/Moda

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É verdade que no dia a dia Ney gosta de ficar mais isolado, tem apreço profundo pelo silêncio. Mesmo assim, como a grande maioria dos brasileiros, sentiu o baque. “No início tive uma tristeza, com as mortes todas. Mas aí parei de ver notícia, parei de ligar a TV, fui pra fazenda e ficava escutando horas e horas de mantras, umas três horas por dia.” Apesar do isolamento, alternado entre o Rio e a serra, soube há dois meses que teve contato com o vírus ao realizar um teste de sorologia. Não tem ideia de quando ou como pegou, desconfia apenas de um dia em que acordou mais preguiçoso, melancólico.

Ney nunca foi de sucumbir à tristeza. Sóbrio na vestimenta do dia a dia, colorido nos costumes e nos adereços que compõem performances memoráveis nos palcos, transita com fluidez nas fronteiras dos gêneros preestabelecidos. Nem azul, nem rosa. Ney sempre vestiu o que quis. “Sou homem e gosto, mas não aceito as limitações impostas para o sexo masculino.”

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Mas o homem que subiu no palco com o Secos & Molhados e se requebrava ao som de “Vira vira vira homem, vira vira, vira vira lobisomem” foi encontrar na maquiagem a coragem de que precisava para desafiar as tradições da família brasileira, em plena época de ditadura militar. Tudo intuitivo, sem querer. Ney tinha medo de o reconhecimento lhe roubar sua privacidade. Não queria ser apenas uma pessoa. “Eu era do teatro. Decidi que seria uma coisa híbrida, uma ave, um réptil, qualquer coisa. E quando me vi sem rosto descobri uma coragem que não sabia que existia dentro de mim. Liberou essa coisa de dentro pra fora.”

Ney veste camisaOcksa na Obra, e calçaacervo Ney Matogrosso Foto: Jorge Bispo

Essa “coisa” é o que muito provavelmente mantém a chama acesa de uma plateia tão versátil para um artista tão à frente do seu tempo. “Quando subo ali, libero uma energia sexual, não é pra homem ou pra mulher, é pra plateia. Fico muito feliz quando uma pessoa vem falar comigo depois de um show e diz que achava que não sentia mais nada, mas descobriu que ainda estava viva sexualmente.”

Há quem ainda se incomode – e Ney percebe também quando isso acontece. Está acostumado. Tal “fluidez” foi questionada até internamente no Secos & Molhados logo que começou. “Até acender a luz ninguém sabia se eu era homem ou mulher. Eu estava quebrando muitos tabus de uma vez só. Eles passaram a se incomodar por começarem a falar que era um grupo de homossexuais e eles não queriam. Mas já era tarde, o grupo já tinha ficado famoso e pediam pra que todos fossem iguais.”

Sua atuação política se limitava e ainda se restringe à sua existência. “Não tenho esse envolvimento, esse ímpeto. Eu sabia que eu estava solapando. E aproveito pra corrigir algo que disse de Caetano (Veloso) há muitos anos: ele não foi pro exílio por conta só de política, mas de política comportamental. Foi Caetano quem me abriu a possibilidade de ser assim, talvez um pouco mais radical.”

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O figurino é algo que ele radicaliza conforme o conceito do espetáculo. Quanto mais rock-n’-roll, mais desenfreado. Durante tempos, entregava suas criações para as costureiras realizarem. Até que casou artisticamente com Ocimar Versolato, que assinou todos os shows até a morte do estilista, em 2017. Com seu Bloco na Rua, inaugurou uma parceria com Lino Villaventura, o primeiro, aliás, a vetar interferências do artista durante o processo criativo do estilo. Uma novidade aceita um pouco a contragosto, confessa.

Para Ney, não podemos ficar presos no agora, pois “tudo passa, ninguém vai ficar pra sempre”. Nem mesmo possíveis comentários de haters em sua conta no Instagram permanecem: “Apago na hora”. Esperando ansiosamente pela vacina e por tempos melhores, deixa aos leitores a receita de paz que rege a sua vida: “Parem de brigar, de se falar mal, sejam menos agressivos, se respeitem, sejam mais amorosos. Essa é a lei que rege o universo, é o que comanda o espetáculo, não essa mixórdia. Eu não acredito em Deus como um ser humano. Deus pra mim é um princípio amoroso, que não está julgando ninguém.”

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