Era o segundo dia do ano. A sensação de liberdade e leveza a preenchia de uma forma contrária ao que a sua racionalidade enxergava. A pandemia estava em seu ápice e tinha absoluta consciência da ferocidade da doença. A economia não dava sinais de melhora em sua área e o ano seria desafiador para se dizer o mínimo. Mesmo assim, a sensação continuava ali. Há dez dias estava assim, em delírio, como se estivesse finalmente libertada de um carrasco para poder traçar planos para uma nova vida.
A sensação se transformou em emoção quando embarcou para sua merecida, acreditava, viagem de férias. Seu marido, organizado e precavido, comprara tudo em agosto, prevendo a alta das passagens e destinos, para um fim de ano aonde tínhamos urgência de escapar. Tomaram todas as medidas de precaução, as máscaras que usavam estavam entre as mais bem avaliadas pelas publicações especializadas e o hotel escolhido tinha só dez bangalôs com grande distanciamento entre eles para que hóspedes não precisassem ter contato. Álcool gel em mãos, pouca bagagem (vestir o quê? E para quem?) e a liberdade bateu literalmente asas rumo ao estado mais alegre do Brasil.
O slogan “Sorria, você está na Bahia” havia virado refrão em sua cabeça há meses e, claro, antes mesmo de pousar, sorria escancaradamente e até despudoradamente para o momento. Ao chegar, os sonhos se transformaram em realidade. O bangalô era uma perfeita pequena casa de frente para o mar quente e sem ondas, sem perigo algum. Areia branca e fina. “A praia é feita para você andar”, disse o marido. Teria tempo para escrever e ler, suas grandes paixões. Teria tempo – palavra mais usada por ela nesse ano em que o seu tempo tinha sido 100% dedicado a manter seu negócio. No ano que passou, seu tempo não tinha sido seu. Sem romances, viagens, nem sonhos, ela fez com que o tempo fosse minuciosamente planejado para resistir à crise.
Foi depois de um delicioso jantar ao ar livre na segunda noite de viagem que tudo aconteceu. Com a brisa morna da Bahia e regado a Chardonnay, seu vinho branco predileto, um calafrio, que ela pressentiu como sinal de bons presságios, veio e ficou. À noite, febre, enjoo e um pesadelo de idas e vindas ininterruptas ao banheiro da linda casinha que agora parecia enorme com um corredor distante e mal assombrado. Seguiu-se o segundo dia, em que a febre aumentara e o médico, acionado por zoom, deu seu veredicto: intoxicação alimentar. Sabendo que estavam há cinco horas de carro de um aeroporto perguntou, “você aguenta ficar? Se sim, vamos tratar você aí”. E ficou.
Mais três dias se passaram, aonde dia e noite se confundiram no emaranhado de ondas de calor, idas e vindas, sonos picados por pesadelos, banhos, soro caseiro, água de coco e Gatorade. E a tal liberdade escorria dia após dia pelos dedos. Olhando pela varanda, o céu azul, o mar sem ondas, o tempo ali disponível e inutilizado. No sexto dia, acordou se sentindo viva, mas frágil, e com mais uma semana de antibiótico por vir – além de zero álcool e frutos do mar. No máximo, poderia comer purê de batatas sem leite ou manteiga e um grelhado. No sétimo dia, acordou. Foi com esforço até a praia e tomou o banho de mar morno sem ondas, pegou o avião e, em São Paulo, chegou em casa. Desmarcou a primeira reunião, deitou em sua chaise longue e abriu o primeiro romance.
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