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Romance imagina o dia que um homem branco acorda negro; veja títulos para combater o racismo

Nova safra de títulos usam a sátira para falar de raça e preconceitos

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Por Alexandra Alter
Atualização:

No novo romance de Chinelo Okparanta, um jovem branco está enojado com seus pais interioranos e intolerantes. Algumas de suas reações são típicas: ele recusa seus pontos de vista e se muda para Nova York. Outras, porém, são decididamente estranhas: ele começa a se apresentar como G-Dawg, se junta a um grupo de autoajuda para brancos com vergonha de sua raça e começa a se identificar como um homem negro da África.

Sim, Okparanta sabe que a premissa pode ofender. Quando ela começou a trabalhar em um romance sobre pessoas brancas e bem-intencionadas que não conseguem enxergar seu próprio fanatismo, Okparanta, que é nigeriana-americana, percebeu que o assunto era explosivo. Afinal, ela estava entrando em um debate tenso sobre racismo e política de identidade no momento em que essas questões eram intensificadas pelo assassinato de George Floyd e pelos protestos que se seguiram. Então ela recorreu à sátira.

Obra de Nathaniel Mary Quinn, artista norte-americano baseado em Chicago Foto: Artsy

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O humor foi a “medida de segurança que coloquei em prática para não ter de lidar com acusações de tentar escrever a branquitude”, disse ela. “Não estou tentando escrever a branquitude de maneira real. Estou escrevendo sobre a dor que se sente quando se está do outro lado da branquitude”.

O livro resultante, Harry Sylvester Bird, publicado esta semana pela Mariner Books, é sombrio e mordaz, mas muitas vezes incrivelmente engraçado – um dos poucos romances novos que usam sátira e surrealismo para vasculhar suposições comuns sobre identidade racial e cultural e explorar o que significa transgredir esses limites socialmente traçados.

Vários desses novos romances lançam luz sobre as formas mais sutis de preconceito que surgem dos pontos cegos raciais e da ignorância – ou de um desejo equivocado de emular ou apropriar outra cultura.

A escritoraMithu Sanyal faz uma crítica ao racismo na Academia em seu novo romance Foto: Twitter/reprodução

O novo romance de Mithu SanyalIndentitti, lançado este mês, satiriza debates sobre raça e política de identidade na academia. A trama gira em torno de uma estudante de doutorado do sul da Ásia que fica desanimada quando descobre que seu mentor – um proeminente professor de estudos pós-coloniais e raciais do sul da Ásia – não é indiano, mas branco. Em seu romance prestes a ser publicado, Yellowface, R.F. Kuang satiriza a falta de diversidade na indústria editorial com uma história cheia de reviravoltas sobre uma escritora branca que rouba o romance inédito de uma autora asiático-americana recém-falecida e tenta fazê-lo passar por seu próprio livro.

Em seu novo romance, The Last White Man, lançado em 2 de agosto pela Riverhead Books, Mohsin Hamid parte de uma premissa surreal para examinar a identidade racial como uma ficção socialmente construída. Situado em um país sem nome, o enredo conta a história de um homem branco que certa manhã acorda com a pele escura, uma condição misteriosa que se espalha por toda a cidade e força as pessoas a confrontar seus preconceitos latentes.

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Um homem branco que certa manhã acorda com a pele escura e força as pessoas a confrontar seus preconceitos latentes

Hamid, nascido no Paquistão, criou a premissa há mais de 20 anos, quando sentiu ser visto com suspeita por ter “nome muçulmano e pele morena” após o Onze de Setembro. Ele voltou à história durante a pandemia e descobriu que abordá-la através das lentes da fantasia lhe dava mais liberdade para examinar as artificialidades em torno da raça.

“Porque acho que a raça é uma coisa imaginária”, disse ele em uma entrevista. “Se começarmos a intervir no nível que imaginamos, vamos ter insights que valem a pena”.Os romancistas negros há muito usam o surrealismo, a farsa e a sátira para enfrentar os tabus em torno da raça.

O jornalista e escritor negroGeorge S. Schuylerpublicou uma crítica à supremacia branca chamada em 1931 Foto: Acervo Estadão

Em 1931, o jornalista e escritor negro George S. Schuyler publicou uma crítica à supremacia branca chamada Black No More, que apresenta um homem negro ambicioso que passa por um procedimento médico para ficar com a pele branca, mas depois acha a branquitude alienante. Nas décadas seguintes, Ishmael Reed, Charles Wright, Percival Everett, Mat Johnson e Paul Beatty usaram o surrealismo cômico para abordar temas como escravidão, linchamentos e crimes de ódio, bem como os fracassos do movimento pelos direitos civis.

Humor e fantasia podem funcionar como uma espécie de salvaguarda na escrita sobre questões que de outra forma seriam muito dolorosas, até mesmo a violência policial contra negros, disse Nana Kwame Adjei-Brenyah. Seu próximo romance, Chain-Gang All-Stars, se passa em uma América alternativa, onde o sistema prisional com fins lucrativos permite que os condenados compitam por sua liberdade em um reality show de batalha até a morte no estilo gladiador.

A nova safra de sátiras sobre raça reflete um debate contínuo sobre apropriação cultural

“Por ter esse tipo de conceito surrealista e satírico, o livro me permite criar um espaço onde tenho muito controle e ainda posso abordar o mesmo assunto”, disse ele. A nova safra de sátiras sobre raça reflete um debate contínuo sobre apropriação cultural e os conflitos sobre se e como romancistas devem escrever atravessando fronteiras raciais e culturais. Okparanta disse que queria explorar o racismo de um ponto de vista desconhecido.

Mohsin Hamid escreve romance sobre um homem branco que acorda com a pele escura Foto: Riverhead Books

“Como uma pessoa negra que sofreu muito racismo e microagressões, eu queria entender como uma pessoa branca e bem-intencionada ainda pode machucar”, disse ela.

Ela criou a premissa de Harry Sylvester Bird em 2016, quando ensinava escrita criativa na Universidade de Columbia e realizou um seminário sobre a ética de escrever ficção sobre outras raças e culturas. Okparanta, que se mudou de Port Harcourt, na Nigéria, para Boston aos 10 anos, tinha acabado de publicar seu romance de estreia, Under the Udala Trees, uma história de amadurecimento lésbica ambientada na Nigéria dos anos 1960 durante a guerra civil do país.

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Enquanto os alunos debatiam romances como The Confessions of Nat Turner, de William Styron, e Memoirs of a Geisha, de Arthur Golden, Okparanta ficou impressionada com a polarização da questão. “O clima ficou tenso”, disse ela, “porque havia a questão do poder: quem tem o poder de fazê-lo e o que significa você usar esse poder de uma maneira que não representa com precisão a cultura que você está retratando?”.

Cena da comédia 'A Noite em que o Sol Brilhou', que conta o dia em que um homem branco acorda negro. Foto: Columbia Pictures

Alguns anos depois, Okparanta estava morando em Lewisburg, uma pequena cidade na Pensilvânia, onde muitas vezes se sentia deslocada como mulher negra e imigrante africana. Ela se pegou pensando em sua antiga ideia e começou a se perguntar como seria para um escritor negro criar um personagem branco que desconhece seus próprios pontos cegos raciais – uma ideia que parecia ainda mais potente em 2020, com a crescente polarização política e a agitação social.

Autora começou a se perguntar como seria para um escritor negro criar um personagem branco que desconhece seus próprios pontos cegos raciais

Harry Sylvester Bird começa na Tanzânia, quando um Harry ainda adolescente está fazendo um safári de férias com os pais e fica horrorizado com a forma como eles tratam os guias e funcionários africanos. De volta à Pensilvânia, ele decide que não quer mais ser branco e começa a se identificar como um homem negro, e depois se muda para Nova York para fazer faculdade, onde inicia a próxima fase de sua metamorfose. Ele participa de reuniões do Transracial-Anon, um grupo de terapia para pessoas brancas que buscam “redesignação racial”, que acabará culminando em modificações no cabelo e na pele dos integrantes.

A escritora R.F. Kuang critica a falta de diversidade na indústria editorial em seu novo livro Foto: HarperCollins

À medida que a história de Harry se desenrola, Okparanta pinta um retrato de uma América alternativa com paralelos inquietantes com a nossa: um país dividido pelo crescente extremismo e nacionalismo, tentando se recuperar da uma pandemia e da ascensão de um movimento político de supremacia branca de extrema direita chamado Puristas. Seu desejo de se livrar de sua branquitude e ser “um aliado” o diferencia do fanatismo descarado e do ódio dos nacionalistas brancos, mas Harry ainda faz comentários involuntariamente ofensivos sobre os negros. Ele fetichiza a pele negra e, a certa altura, maravilhado, comenta com sua namorada nigeriana que “as pessoas na África conseguem ser muito felizes com muito pouco”.

Okparanta disse que queria fazer um Harry exagerado, mas não caricatural a ponto de os leitores considerarem sua situação ridícula.

Mesmo com a salvaguarda do humor, Okparanta diz que está se preparando para a reação de leitores e críticos que podem interpretar mal seu propósito ou sentir que o romance falha como sátira. As primeiras reações foram um pouco mistas. A Kirkus Reviews o caracterizou como “uma exploração azeda e questionadora de quão profundo é o racismo”, enquanto uma crítica no New York Times argumentou que o romance “não tem o surrealismo empolgante que anima a caricatura racial bem-sucedida”.

A escritora Tayari Jones é uma das vozes que se posicionam contra o racismo nos EUA Foto: Twitter/reprodução

A romancista Tayari Jones, que elogiou o romance em uma sinopse por usar o humor como uma “arma, uma ferramenta e um bálsamo”, disse que a sátira de Okparanta foi bem-sucedida porque ela abordou os personagens e o assunto com irreverência, mas também empatia.

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“Ela não é um homem branco em crise racial, mas é uma observadora perspicaz de uma sociedade em crise racial”, disse. “Ela sabe como é ser uma africana submetida ao olhar ocidental”.

Okparanta disse que não ficará surpresa se alguns leitores sentirem que sua sátira vai longe demais. Afinal, observou ela, quando Voltaire publicou Candido, uma história de amadurecimento que também era uma crítica cruel das estruturas de poder europeias, “a nobreza francesa não gostou”.

“Como é uma sátira, será entendida e digerida de maneira diferente por diferentes pessoas da sociedade”, disse Okparanta. “Alguns grupos podem ver o humor com mais facilidade do que outros”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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