Monteiro Lobato no comando do 'Estado'

Em artigo histórico, publicado no ‘Estado’ em 1945, escritor se recorda de quando precisou assumir o comando do jornal em 1918

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Por Monteiro Lobato
Atualização:

Meu primeiro artigo em jornal grande foi no Correio Paulistano, em 1913 – sobre Guiomar Novais, recém-chegada do seu precoce triunfo no Conservatório de Paris. Mas me passei logo para o Estado, que ficou desde então sendo o meu jornal. Creio que a principal razão da mudança estava na feição oposicionista do velho órgão. Eu também nascera na oposição, mais ou menos como aquele espanhol que desembarcou em Santos e foi logo perguntando: “Há governo nesta terra?”. Responderam-lhe afirmativamente e o espanhol empertigou-se: “Pois então sou contra”.

Monteiro Lobato, que comandou o 'Estadão' em emergência, durante a gripe espanhola, em 1918 Foto: Acervo Estadão

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Não conheço as razões do espanhol; em mim, foi uma eterna revolta contra a desonestidade dos governos. Meu amor por José Américo decorre da sua intransigência, e meu entusiasmo por Prestes Maia vem da sua honestidade absoluta. Honestidades relativas, conheço muitas.

Fui sempre colaborador do Estado, mas free lancer, colaborador livre, dos que só aparecem quando querem ou têm algo a dizer. Não sei escrever por força de contratos ou encomenda. E, naquele tempo, me tornei “sapo” da redação, na boa companhia dos dois grandes Lopes: Filinto, o incomparável humorista, verdadeira reencarnação de Mark Twain, e Maneco Lopes, espécie de bomba atômica barbada.

Sapo de redação quer dizer o sujeito, amigo da casa, que lá comparece todas as noites, e fila o café, e faz daquilo o seu clube. Os sapos comentam as notícias do dia, dão palpites, tosam nos adversários e metem a ronca no próprio jornal. Por quê? Por amor à casa, pura e pia revolta pela não-introdução de melhoramentos que a eles parecem indispensáveis.

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Quem secretariava o Estado naquele tempo era Nestor Rangel Pestana, talvez o mais admirável tipo de homem que me foi dado encontrar na vida. O equilíbrio mental e moral do Nestor! A natural incorruptibilidade do Nestor! O inalterável bom senso do Nestor! Tudo sob um belo aspecto físico de homem – “um perfeito senador romano” –, como definiu Isadora Duncan. Sua ação no jornal era catalítica. Nestor agia por simples ato de presença. Nada precisava fazer para que o Estado se mantivesse sempre na linha e em perfeita vertical. Bastava mostrar-se, comparecer lá todas as noites e sentar-se à sua prodigiosa secretária americana, onde, com o correr das semanas, a papelada ia se amontoando até impedi-lo de trabalhar; vinha então uma limpeza a fundo; tudo aquilo ia para os arquivos ou o lixo – e nova montanha de papel começava a formar-se.

Os espíritos conformados nesse molde são em regra conservadores. Quantas vezes nós, com a leviandade e a irresponsabilidade dos sapos, não propúnhamos coisas, mudanças, reformas no jornal, que achávamos excessivamente pesadão ou casacal, como dizia Maneco. Julinho Mesquita, então no esplendor da mocidade, concordava, mas com um suspiro: “Impossível. Nestor não quer”. E se nós, tomados de revolta, pulávamos com a alegação de que os donos do jornal eram eles e não Nestor, um simples contratado, a invariável resposta vinha sempre a mesma: “Sim, nós somos os donos, mas o Nestor é o secretário”.

Aquilo nos encantava, e mais nos amarrava àquele toco. Eles, os proprietários absolutos, não tinham ânimo de impor. O célebre “Nestor não quer” fala mais alto do que qualquer outra coisa da superioridade daquele ambiente.

Julinho, naquela época o “Capitão”, vivia numa permanente crise de entusiasmo, extravasada em furiosos debates sobre a coisa pública. Muitas vezes errado (na nossa opinião), mas sempre sincero, firme e violento. Gostávamos daquilo, da sua “ferocidade” patriótica, já que para equilíbrio tínhamos o Nestor. O consumo da palavra “pátria” na sala do Julinho sempre foi grande. O sereníssimo e ultrafilosófico Léo Vaz, lá da sua mesa de canto na redação, apontava a caneta, quando o debate rugia: “A sala da pátria está a 100 graus”.

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Creio que foi aquele o período áureo do Estado. Da sua bela fazenda de Louveira, Julio Mesquita “telepresidia” o grupo com a sua inesquecível superioridade de semideus aposentado. Nestor, ali no leme, era a própria imagem da prudência e da experiência mais alta. Julinho representava o elemento fogo; era a mocidade; o futuro. Os sapos faziam o papel do coro das tragédias gregas.

Muita gente lá fora rosnava, achava o jornal “muito fechado” – e creio que era realmente fechadíssimo, mas não há como negar que foi essa feição que lhe deu tamanho prestígio na opinião pública. Antes muito fechado que muito aberto. O São Paulo da era perrepiana jamais tomou partido em qualquer coisa sem saber como o Estado pensava – para declarar-se a favor ou contra. Comuníssima, e frequentadíssima, na capital, e no interior, a frase: “Vamos ver o que o Estado diz”.

O jornal dava a sua opinião pela primeira nota das “Notas e Informações”. Fosse uma questão política ou dum qualquer interesse geral, era ali que em seu estilo tão puro e sintético Julio Mesquita se manifestava – e às vezes, creio, também Nestor. As notas não eram muito frequentes, o que ainda mais lhes aumentava o prestígio.

O coro grego, irreverentíssimo, formava rodinha longe dos ouvidos do Nestor, e caçoava: “O Estado está convencido de que é o centro do sistema planetário; daí a cautela com que emite opinião. Puro medo de que, com um pequeno deslize, venha a perturbar-se a harmonia universal e rebente alguma catástrofe cósmica”. Ah, o cuidado do Nestor na escolha dos adjetivos! Para que o jornal atribuísse a alguém a qualidade de “distinto” ou “notável” era preciso muita cosia, sobretudo que o sujeito o fosse realmente. As palavras nestorianas só saíam depois de meticulosamente pesadas em balança de alta precisão.

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Em 1918, ocorreu por lá curioso incidente. Por esse tempo, era eu um dos sapos mais assíduos; não dispensava o encontro diário com os dois Lopes, com Julinho e Nestor. Irrompera a gripe, que breve se tornou calamidade pública. A preocupação de todos era uma só – a gripe. O trabalho de todas as conversas era um só – a gripe. O trabalho de todos, um só – socorrer gripados. E toda gente ia caindo de cama. O número dos conhecidos mortos começava a assustar.

As notícias na sala de redação passaram a ser de um só tipo. “Chegou telefonada de Louveira. Julio Mesquita caiu.” E logo depois: “Sabem quem caiu? Julinho. E Chiquinho também”. Já ninguém dizia “cair com gripe”, ou “adoecer”, e sim, e só, “cair”.

Certa noite, ao entrar na redação, não encontrei Nestor na célebre mesa. Dez horas, onze horas e nada. Telefonamos para sua residência. Tinha caído também. Logo depois, nos aparece Plínio Barreto, que vinha substituí-lo no secretariado. Mas, no dia seguinte, cai Plínio e surge Pinheiro Júnior em substituição. Dois dias apenas esteve Pinheiro a postos, porque também caiu. E, como lá embaixo, na administração, houvessem caído Chiquinho, Ricardo Figueiredo, o gerente, e seus substitutos, aconteceu que, em certo momento, todo o estado-maior do jornal ficou fora de combate.

Lembro-me da noite em que só encontrei Filinto Lopes. Esperamos até onze horas o substituto de Pinheiro Júnior. Ninguém apareceu. O jornal estava acéfalo e ameaçado de não sair no dia seguinte. Falta de quem o dirigisse. Lá na “Vala Comum”, isto é, na sala geral dos redatores, cozinheiros e repórteres, a brecha aberta pela gripe fora de 50% ou mais, e ali na sala do secretário o desfalque era integral.

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Uma ideia me ocorreu. – Amigo Filinto, a situação é grave. O jornal está sem cabeça e correndo o risco de paralisação. E não há a quem recorrer. Os donos caíram, e caíram os gerentes e mais de metade do pessoal. Dos sapos, só restamos nós dois. Até Maneco, apesar da sua grande barba, foi para a cama. Proponho que assumamos o comando. Do contrário, não teremos o Estado na rua a partir de amanhã. Filinto Lopes gravemente concordou.

– Pois então – continuei –, tome conta da sala de espera e receba lá quem vier com os informes e comunicações, que eu me sento à mesa do Nestor e despacho o expediente.

E assim fizemos. Enquanto na sala de espera seu Filinto recebia gente, eu na sala do Nestor abria o famoso bauzinho da “matéria” e passava os olhos naquilo, selecionando o que tinha de sair no dia seguinte, podando excessos, baixando os adjetivos, rabiscando instruções. Depois zás!, metia a papelada no tubo pneumático que, por baixo da terra, levava tudo às oficinas de composição e impressão.

Para reforço da “Vala Comum”, mobilizei vários elementos de fora, como Léo Vaz e Alarico Caiuby, que por esse tempo trabalhavam comigo na Revista do Brasil – e, como desfecho de semelhante mobilização, Leó Vaz entrou definitivamente para o corpo de redatores do Estado. E fez carreira. Quando Nestor faleceu, foi quem o substituiu como secretário do jornal; mais tarde, alçou-se ao posto supremo: diretor, em substituição de Plínio Barreto. Hoje, Léo Vaz tira o chapéu na rua sempre que ouve a palavra “gripe”.

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Nesse trágico momento da vida do Estado, ocorreu um incidentezinho que tem sua comicidade. Este jornal e o Correio Paulistano sempre viveram às turras, órgãos que eram de políticas adversárias. Em havendo ensejo, um dardejava contra o outro uns borrifos de veneno, mas sempre com muita linha e elevação. Pois bem: aproveitei-me do fato de estar sozinho e sem controle à frente do jornal para umas alfinetadas no governo. Com toda a gravidade, numa sábia imitação do estilo de Julio Mesquita, lancei uma das tais notas entrelinhadas sobre a “falta de coordenação dos serviços oficiais de combate à gripe”. Certo de que quem falava era o pobre do doutor Julio, lá na cama em Louveira, o Correio vibrou de cólera: “Nem numa ocasião como esta, de calamidade nacional, o grande órgão esquece os seus rancores políticos!”. Eu, impassível, ignorei o estrilo e continuei com as notas, numa verdadeira “scie” sobre a tal falta de coordenação. Lá em Louveira, Julio Mesquita folheava o jornal na cama e danava: “Quem é que me anda em São Paulo com estas absurdas impertinências?” – e não podia informar-se pelo telefone, porque em São Paulo todo mundo estava morre-não-morre nas unhas da gripe.

Durou uns dias o pega dos dois jornais, muito a sério do lado do Correio, sempre a ver naquilo o “dedo do Julio”; e da minha parte, com piscadelas do olho esquerdo para seu Filinto.

Mas tudo tem fim. Ao cabo de duas ou três semanas, indo à noite para a redação (era na Praça Antônio Prado), esbarrei na rua Quinze com um vulto encapotado, de cache-nez e gola erguida. “Nestor!”... Sim, era ele que saía pela primeira vez, depois de sua temporada na cama. Seguimos juntos, Nestor a contar da doença e eu, com muito medo de censura, a falar da nossa intromissão na seara alheia. Mas Nestor apenas disse: – “Bem que andei desconfiado do milagre – todos na cama e o jornal a sair. Foi ótimo” – e deu-me a absolvição.

Chegando à redação, passei-lhe a vara e apresentei-lhe os meus elementos. Léo e Caiuby. Dias depois, foram surgindo os alcançados pela gripe – menos os que morreram, evidentemente, como caiu na asneira de o fazer o nosso querido Adalgiso Pereira.

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Este fato revela o clima do “velho órgão”. Tão grande a identidade de todos com a alma do jornal, tamanha a confiança recíproca, que, sem ordem de ninguém, dois meros filantes de café assumem o comando do maior jornal do Brasil e dirigem-no autocraticamente por mais de uma quinzena. E, finda a “ocupação”, os donos e gerentes de nada se queixam, antes agradecem a lembrança e perdoam, sorrindo aquela intrusão inédita nos anais da imprensa. Porque nunca, jamais, em país nenhum do mundo, ocorreu uma coisa semelhante...

Tal era o “esprit de corps” do jornal de Julio Mesquita. Imagine-se agora o espanto, o estarrecimento, e depois a indignação quando, em 1942, correu pela cidade nova de que o Estado fora invadido e ocupado pela polícia; e que a polícia havia descoberto lá metralhadoras, canhões, tanques, dreadnoughts, submarinos e bombas atômicas – terríveis armas com que “o pessoal do Estado” pretendia derrubar a ditadura que nos vinha fazendo tão felizes...

E depois veio o exílio dos donos do jornal, e vieram as ameaças e as pressões, e por fim a compra à força feita pelo governo. A sensação do público de S. Paulo foi de um fim de tudo. E parecia na realidade o fim de tudo, aquele coroamento da ocupação militar que, desde 1930, desabara sobre S. Paulo. Entre todas as humilhações com que a ditadura nos obsequiou para castigo do levante de 1932, nenhuma tão dolorosa como a que destruiu o último consolo que nos restava: o Estado sempre de pé, sempre digno, sempre mudo, mas de extraordinária eloquência em sua mudez. Era nosso único meio de protestar contra a onipotência ditatorial. E a gente paulista viveu três anos com um peso no coração. O confisco do Estado não era ofensa dessas que saram. Abriu em nossas almas uma úlcera fagedênica. Já não podíamos protestar contra a pilhagem de S. Paulo nem sequer por meio da eloquente mudez de um jornal...

Mas tudo tem fim, e hoje é com imensa euforia que assistimos ao grande ato da reparação. A entrega do seu a seu dono, a devolução do Estado aos Mesquitas, vai ser o começo de cicatrização da ferida aberta na alma paulista pela onda predatória em que se transformou a arrancada libertadora de 1930.

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A Via Láctea possui em certo ponto uma falha, um negror profundo que recebeu dos astrônomos o nome de “Saco de Carvão”. Na longa e luminosa via láctea do jornal de Julio Mesquita, a fase de 1942 a 1945 aparecerá como um saco de carvão.

O velho órgão continuou a sair na sua forma física de sempre, mas já sem alma, sem coração e sem cérebro. Vazio. Puro fantasma de Macbeth. E assim foi que o Último Interventor, atendendo às instruções de um grande Ministro da Justiça, restaurou-o no que fora, devolvendo-lhe a alma, o coração e o cérebro. Quando Macedo Soares assinou o decreto redentor, estava simbolicamente pingando o ponto final na ocupação naziforme da terra bandeirante.

“Faça-se justiça para que não pereça o mundo”! – é o brocardo de incomparável beleza que os juízes da República Judiciária espanejaram e retiraram do longo olvido. Abençoados sejam.

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