Mulheres intelectuais e duronas são reunidas em ensaio

'Tough Enough', de Deborah Nelson, analisa criadoras diversas que têm em comum a ausência de sentimentalismo

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Por Sérgio Augusto
Susan Sontag está entre as duronas de 'Tough Enough' 

Tudo bem que os homens sejam de Marte e as mulheres de Vênus, já que, mais “próximas do Sol”, elas são mais calorosas, emotivas, sentimentais e compassivas que os homens. Nesse estereótipo cabem desde Madre Teresa de Calcutá até Eva Perón e Ana Maria Braga, além de escritoras de ficção cor-de-rosa e pensadoras com o coração maior que o cérebro. Decididamente não é dessa estirpe que trata o recém-aclamado ensaio de Deborah Nelson, Tough Enough (Duronas o Bastante): 224 páginas com a chancela da University of Chicago Press e preço ainda salgado na versão Kindle (US$ 25,05), puro deleite intelectual da primeira à última linha. Primeira linha: “Este é um livro sobre mulheres escritoras, intelectuais e artistas que discutem apaixonadamente sobre a obrigação estética, política e moral de enfrentar a realidade, não importa quão dolorosa, sem sentimentalismo.” Precede-a uma epígrafe extraída das Notas Sobre Camp, de Susan Sontag: “Para designar uma sensibilidade, traçar seus contornos e contar sua história exige-se uma profunda afinidade modificada pela repulsa.”

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São seis as duronas selecionadas por Nelson. Com seis modos diferentes de se relacionar com o sofrimento e a certeza de que servimos melhor às causas políticas quando delas nos acercamos com calma e frieza. Ao lixo com o parti pris emocional, a comiseração fácil, a empatia ofuscante, e a ideia de que todas as mulheres são, naturalmente, de Vênus. Por que não de Júpiter e Saturno, se mais frias diante dos fatos? (Tough Enough não faz qualquer menção à frívola dicotomia de John Gray; a frívola ilação é exclusivamente minha.)

Ei-las, por ordem de entrada em cena: a escritora e filósofa mística francesa Simone Weil (1909-1943), a filósofa e historiadora alemã Hannah Arendt (1906-1975), as escritoras e ensaístas americanas Mary McCarthy (1912-1989), Susan Sontag (1933-2004) e Joan Didion (a única viva, 82 anos), e a fotógrafa nova-iorquina Diane Arbus (1923-1971). 

Duronas porque nunca se afinaram com a proverbial indulgência feminina. E também porque nunca se arrependeram de pensar, analisar e agir com inflexível severidade diante dos fatos, por mais trágicos e deprimentes que fossem; à exceção de Didion depois da morte do marido (John Gregory Dunne) e da filha, sobre os quais escreveu dois livros de memórias inevitavelmente vincados pela emoção.

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Como toda e qualquer lista, esta também é incompleta e controversa. Alguns sentiram as ausências da líder feminista Betty Friedan e da escritora Patricia Highsmith; a própria autora, ao justificar suas escolhas na introdução, menciona a escritora Flannery O’Connor como forte candidata à inclusão no grupo. 

As escolhas não foram casuais, nem tampouco programadas. Suas eleitas – todas com participação relevante na transformação da cultura do século passado e profundamente marcadas por seus maiores flagelos (como o Holocausto, Hiroshima, os gulags, a Guerra do Vietnã, assassinatos políticos, a tensão social nas décadas de 1960 e 1970, o terrorismo)– não compõem um grupo homogêneo, mas suas vidas profissionais se cruzam na órbita de uma elite intelectual nova-iorquina, predominantemente masculina e entrincheirada em publicações como Partisan Review, Politics, Commentary, Dissent e New York Review of Books. 

McCarthy traduziu Weil e era a maior amiga de Arendt; Sontag escreveu um ensaio sobre Weil (está em Contra Interpretação) e a obra fotográfica de Arbus. O que sobremodo as distingue e aglutina é o compromisso com o estoicismo em confronto direto com a dor e uma postura frontalmente contrária à adoção de um tom sentimental justo em momentos que pareciam exigir mais emocionalismo.

Weil assumiu uma concepção trágica de justiça ao apegar-se a uma forma de sofrimento extremo, para muitos análoga à crucificação. Sontag foi a primeira intelectual a reagir publicamente à retórica santimonial e jingoísta deslanchada pelos atentados de 11 de setembro, atraindo contra si a ira de marcianos e venusianas patrioteiros e maniqueístas. A esquerdista Didion satirizou as boas intenções da Nova Esquerda americana. McCarthy jamais deu mole para os poderosos do dia; nem as feministas escaparam do lanho de sua ironia. Arendt dissecou os efeitos devastadores da compaixão na vida política e criticou a linguagem emocional da promotoria israelense no julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann. Como Sontag, pagou caro por seu audacioso approach. As fotos grotescas de Arbus receberam cusparadas diárias quando expostas no Museu de Arte Moderna de Nova York. 

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Arendt estava certa de que os sentimentos de horror provocados pelos campos de extermínio poderiam obliterar o raciocínio. Para ela (releiam seu ensaio Sobre a Revolução), o coração humano é o “lugar das trevas”, mais um objeto suspeito que de insight; melhor, portanto, deixá-lo fora da esfera política. Quanto mais emocional uma reação, mais nos afastamos da questão que a motivou e desviamos a atenção para o nosso próprio sentimento. Arendt via a empatia como uma espécie de solipsismo, por nos levar a sentir tanta pena de nós mesmos quanto das vítimas, tornando imperativo que ajudemos só as pessoas com as quais nos identificamos – e terminemos aprisionando o mundo numa fantasia infantil do bem contra o mal.

As duronas eram lúcidas porque duronas, e vice-versa.

Capa do livro 'Tough Enough', de Deborah Nelson 

Tough Enough Autora: Deborah NelsonEditora: University of Chicago Press 224 páginas US$ 25

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