Ao longo dos séculos, escritores e artistas ambientaram suas obras no mundo dos sonhos. De Kafka a Jorge Luís Borges, autores exploraram esse estado de consciência em romances de modo a popularizar o onírico no gênero, antes muito tratado em peças de teatro, como A Vida é Um Sonho, de Calderón de La Barca a O Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare. Clássicas, as montagens teatrais contam, cada vez mais, por conta da tecnologia, com o artifício de luzes nas ribaltas para projetar a atmosfera surreal criada nos textos. Terreno sedutor, pela anarquia proporcionada pelos labirintos da mente, o cruzamento entre literatura e ciência chegou a ser estudado por Freud no século 20. Aliás, ele foi autor de um dos tratados mais interessantes sobre o tema, O Delírio e os Sonhos na Gradiva, sobre o romance de Wilhelm Jensen que contava a viagem interior de um jovem arqueólogo depois de ter contato com a escultura homônima (Gradiva) e sonhar com o vulcão do Vesúvio às vésperas da erupção. Virou uma espécie de bíblia do movimento Surrealista.
“Quando fazem sonhar as personagens que sua fantasia criou, obedecem à experiência cotidiana de que os pensamentos e afetos dos indivíduos prosseguem durante o sono, e buscam retratar os estados de alma de seus heróis mediante os sonhos que eles têm. Mas os escritores são aliados valiosos e seu testemunho deve ser altamente considerado, pois sabem numerosas coisas do céu e da terra”, escreveu Freud, dando sinal verde para gerações posteriores trabalharem em cima do tema. De obras recentes que trafegam pelo subconsciente, o romance Visão Noturna, de Tobias Carvalho percorre o mundo dos sonhos. O escritor gaúcho, de 26 anos, investiga as relações maternas, a solidão e os desejos ao flertar com o exotérico. Ele lembra pesquisas e ressalta a importância dos sonhos frisando que dormimos um terço da vida. “O que se pode fazer é aproveitar esses sonhos, eu cheguei a fazer um diário do que sonhava”, conta aos Aliás.
No romance, o autor mistura conceitos científicos com criações próprias e adaptações de fenômenos reais. Carvalho se disciplinou para chegar a uma etapa mais profunda da consciência: o sonho lúcido. “Uma época fiquei obcecado por sonhos lúcidos, fui a fundo nisso, em fóruns da internet sobre pessoas que escrevem suas experiências; tendo contato com a literatura existente sobre o tema. Explorar o subconsciente de forma mais consciente me interessava”. Pouco mais de uma dúzia de experiências foram suficientes para atiçar o autor a colocar no papel um pouco do que aprendeu em seu estado de Lucidez, “É difícil falar sobre sonhos sem cair no clichê, principalmente na literatura quando se tem Borges e Kafka”.
O onírico fascina também por manter a pulga atrás na orelha do leitor que, muitas vezes, acostumado a narrativas lineares, se surpreende com as guinadas de obras mesmo em terreno ficcional. É o caso de Outra Novelinha Russa (Dublinense), lançada recentemente no Brasil com tradução de Reginaldo Pujol Filho. Na história, um arquiteto aposentado resolve viajar a Moscou e perseguir um sonho de vida: ser enxadrista. Segmento na moda desde a série O Gambito da Rainha (Netflix), o escritor chileno Gonzalo Maier explora os delírios daquele excêntrico jogador que desembarca em uma Rússia devastada após a queda do Muro de Berlim. “Seria muito fácil explicar o livro a partir de Freud, e dizer que a literatura é o inconsciente da sociedade, que os livros são seus sonhos”, ressaltou Maier em entrevista ao Aliás. “Digamos que, como acontece com algumas drogas, a vida misturada ao sono seja um pouco lisérgica e, portanto, um pouco melhor.”
Para Carvalho, foi difícil falar sobre sonhos sem cair na ciência, tema cada vez mais popular entre os leitores de sua geração pela quantidade de conteúdos audiovisuais sendo lançados sobre o tema (podcasts, vídeos, filmes).”[O sonho] É um assunto ‘cabeçudo’, esse foi um dos motivos que me deixou mais ansioso do que no primeiro livro, em As Coisas escrevi sobre algo que está próximo de mim, que os leitores se identificavam imediatamente, já nesse entra numa pira mais surreal”. Segundo o autor, Visão Noturna foi se fazendo, talvez como os sonhos. “Geralmente no conto se tem um projeto final, para fechar o arco narrativo, mas eu não tenho e vou brigando comigo mesmo no processo, é como tirar leite de pedra, meu livro é um emaranhado de ideias, conto dentro do conto, como no sonho dentro do sonho”.
Nesse processo de se situar entre ficção, realidade e o sub-consciente, o insight de Maier se deu a partir de uma imagem que grudou em sua cabeça um certo dia: um senhor a vagar pelas ruas de Moscou, à deriva, fora do lugar e, ao mesmo tempo, completamente confortável. “Depois de pensar várias vezes, percebi que esse homem havia viajado para procurar uma revanche um tanto absurda com enxadristas russos.”, explica o escritor chileno. Ao ambientar uma Moscou em transe pós depressão, os chistes do protagonista, ele constrói personagens misteriosos, como os casmurros enxadristas russos que habitam o imaginário popular. Em confronto com Moraga, o protagonista, que não fala Russo, o jogo vira a moeda de troca, o único idioma acessível entre os cossacos e o visitante. “Acho que Moraga, como outros personagens meus, costumam estar naquela fronteira entre a vigília e o sono, ou na fronteira que separa o mundo exterior e sua própria interioridade, que costuma ser muito mais divertida.”
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