Em 2022, pelo menos seis obras de Samuel Beckett foram lançadas no Brasil: a Biblioteca Azul publicou, do escritor irlandês, o livro de contos Mais Pontas que Pés (1934), em tradução de Ana Helena Souza, e Disjecta, uma reunião de ensaios, resenhas, cartas e um fragmento teatral, escritos entre os anos 1920 e 1960, em tradução de Fabio de Souza Andrade; a editora Cobogó, por sua vez, lançou Vozes Femininas, que contém três peças escritas entre 1972 e 1981, em tradução de Fábio Ferreira; já a editora Relicário, publicou a poesia completa de Beckett, em tradução de Marcos Siscar e Gabriela Vescovi.
A Companhia das Letras publica agora os dois romances inaugurais do autor de Esperando Godot: Murphy (1938), que já havia sido publicado pela Cosac Naify em 2013, e Watt (1953), ambos em tradução de Fábio de Souza Andrade, que vem se dedicando há anos ao estudo da obra de Beckett e lidera, na Universidade de São Paulo, um grupo de pesquisa bastante atuante: o Grupo de Pesquisa Estudos sobre Samuel Beckett, composto por tradutores, entre eles os mencionados acima, além de ensaístas, dramaturgos, atores etc.
O jovem Beckett se surpreenderia com o interesse das editoras em sua obra, uma vez que o escritor teve bastante dificuldade em publicá-las em sua época. Antes de Murphy ser aceito pela Routledge, foi recusado por muitas editoras, como lembram C.J. Ackerley e S.E. Gontarski, para os quais esse foi “o primeiro texto que ele [BECKETT]não rejeitou automaticamente”. Isso fica claro em uma carta de 1936, que pode ser lida em Disjecta e na qual Beckett reluta em aceitar os cortes sugeridos ao seu romance. Diz o escritor ao seu agente literário, George Reavey: “Deixe-me adiantar que não vejo como o livro possa ser cortado sem se desorganizar. Especialmente se o corte incidir na abertura (e Deus sabe que a primeira metade é puro céu de brigadeiro). A parte subsequente perderá toda ressonância que carrega. Não consigo imaginar o que eles querem que eu exclua. Recuso-me a tocar a seção intitulada Amor Intellectualis quo M. se ipsum amat. E me recuso a tocar o jogo de xadrez. O capítulo do horóscopo também é essencial [...].”.
Ao final, contudo, acena com a possibilidade de ceder às exigências editoriais diante da demora em publicar o livro: “Mas estou ansioso por ver o livro publicado e portanto não posso me dar ao luxo de responder com um sonoro não a tudo”. Ainda assim, Murphy demoraria mais dois anos para ser publicado.
A grande aventura de ‘Murphy’ é a de desvendar seu protagonista, que já nasce cansado e “aposentado”
Murphy é, diria, uma espécie de Hans Castorp, personagem de A Montanha Mágica (1924), de Thomas Mann, na medida em que não parece ter nenhum objetivo na vida e é levado por impulsos, por sugestões de terceiros, sem que se dedique a refletir sobre o que faz: “O sol brilhava, sem alternativa, sobre o nada de novo. Murphy, como se fosse livre, dele se escondia, sentado, num pombal de West Brompton”. O romance já inicia com uma grande ironia, pois Murphy poderia estar livre se ele mesmo não tivesse se amarrado nu a uma cadeira de balanço. Aliás, “estava sentado em sua cadeira desta maneira porque era um prazer imenso!”.
A narrativa se passa em Londres, onde Beckett morava e se submetia a sessões de análise três vezes por semana e sofria de solidão, como lembra Harold Bloom, que dedicou um ensaio sobre Murphy no seu livro Gênio: Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura. O protagonista de Beckett, que percorre as ruas da capital inglesa guarda nesse aspecto uma sutil semelhança com Leopold Bloom, protagonista de Ulisses (1922), de Joyce, o qual também percorre as ruas, mas as de Dublin. A semelhança termina aí, pois Leopold Bloom tem emprego e responsabilidade, ao passo que Murphy já teria nascido cansado e “aposentado”, e permaneceria assim se não lhe cobrassem uma profissão. Murphy se move por obrigação: depois de sair de sua cadeira e circular um pouco pela cidade, percebe que “ficar sentado não era o bastante, agora era preciso deitar-se. Qualquer modesta faixa do famoso gramado inglês serviria, um espaço em que pudesse se espichar, interromper a vigília e adentar as paisagens em que não havia comerciantes nem cânceres residenciais, mas apenas ele, irreconhecível de tão melhorado”. Quanto à linguagem, Joyce e Beckett estão em lados opostos, o primeiro é, digamos, barroco, já o segundo é, certamente, minimalista.
A grande aventura de Murphy é a de desvendar seu protagonista, cujo espírito “concebia-se como uma grande esfera oca, hermeticamente selada ao universo exterior. Isso não implicava um empobrecimento, pois não excluía assim nada que ele próprio já não contivesse em si”. E o que ele contém é uma série de paradoxos impossíveis de conciliar.
Watt, romance posterior a Murphy e que ainda não havia sido traduzido para o português brasileiro, foi escrito na França durante a Segunda Guerra Mundial, mas concluído somente em 1948. Assim como ocorreu com o romance anterior, não foi fácil conseguir uma editora para publicar o novo livro. A Routledge, que havia acolhido Murphy, não se entusiasmou com Watt, que só veio a público em 1957, em uma edição bastante problemática.
Diferentemente do primeiro romance, Watt não agradava tanto a seu autor. Como afirma Fábio de Souza Andrade, “se Beckett não renegava o livro inédito, tratava-o quase como um patinho feio, na imagem de Gontarski e Ackerley, ‘um livro insatisfatório’, mero ‘exercício’ de tempos de guerra”.
Watt é bem mais ousado do que Murphy. No segundo romance, Beckett faz experimentações linguísticas, mistura cálculos, partituras e texto, escreve de trás para frente, quase uma mensagem cifrada dos tempos de guerra
Watt é bem mais ousado do que Murphy. No segundo romance, Beckett faz experimentações linguísticas, mistura cálculos, partituras e texto, escreve de trás para frente, quase uma mensagem cifrada dos tempos de guerra. Há pontos comuns entre os dois livros e certas características das personagens se tornarão marcantes na sua obra posterior: Watt, assim como Murphy, cede facilmente ao cansaço, para citar um exemplo. Lê-se no romance que, “Tão logo se sentou, percebeu que não seria fácil tornar a levantar-se, como teria de fazer, e seguir adiante, como teria que seguir. Mas era tanta a sensação de fraqueza, já pressentida há algum tempo, que se entregou a ela, instalando-se à beira do caminho, o chapéu puxado para trás[...]. Então, arrumando o chapéu na cabeça, e endireitando-se para alcançar as malas, rolou sobre si mesmo e deixou-se ficar ali, de bruços na vala, enterrado pela metade no mato crescido e baldio [...]”. Vale lembrar que personagens esgotadas e que se encontram em valas, urnas, latas de lixo etc. são recorrentes na obra de Beckett.
Watt de certa forma anuncia também Esperando Godot, de 1949. Assim como na peça, no romance nada acontece, ou melhor, a prosa parece querer avançar, mas, de repente, surge uma reviravolta, fruto de hesitações ou suposições, que leva o leitor ao ponto de partida: “Watt poderia ter perguntado a Erskine, poderia ter dito, Falando nisso, Erskine, no seu quarto, tem uma campainha ou não? Mas isso teria deixado Erskine desconfiado, e Watt não queria ressabiá-lo. Ou Erskine poderia responder, Sim, quando a verdadeira resposta seria, Não!, ou Não!, quando a verdadeira resposta seria, Sim!, ou Não!, sem que Watt pudesse lhe dar crédito. E então Watt não teria avançado nada no assunto, muito pelo contrário, pois teria deixado Erskine desconfiado”.A hesitação é tanta em Watt que nem mesmo as personagens conseguem ser descritas precisamente: “[...]Um dia o Sr. Knott podia ser alto, gordo, pálido e moreno, e no seguinte magro, baixo, corado e loiro, e no seguinte baixo [...]”.
Nesse livro, Beckett lança mão de listas, de inventários que suspendem o andamento da narrativa, pois não acrescentam nada a ela. As listas são muito comuns nas narrativas nonsense e absurdas, e podem ter um efeito cômico, não em razão de piada específica, mas em razão da perplexidade que causam no leitor, o qual se sente “enganado”, como se o escritor o fizesse “perder tempo”. Em Watt, por exemplo, para situar e destacar a importância de uma determinada mulher na família de uma das personagens, o narrador se vale de uma longa lista de relações de parentesco, que longe de esclarecer algo, apenas confunde o leitor: “Pois não era apenas a esposa, a mãe, a sogra, a tia, a irmã, a cunhada, a prima, a sobrinha por afinidade, a sobrinha, a sobrinha por afinidade, a nora, a mulher do neto, e claro a avó que foi roubada do pai de seu sogro, do sogro, dos tios por afinidades, da tia, das tias por afinidade, dos primos, dos cunhados[...]”.
Não bastassem todas essas características que embaralham e “atrasam” a narrativa, há no livro uma série de repetições que revelariam uma certa desconfiança com as palavras. Como afirma Luciano Gatti no posfácio de Watt, as personagens desconfiam da “capacidade da linguagem em nomear universais, mas também de designar os particulares”. No romance, prossegue Gatti, “as palavras se tornam tão vazias de significado quanto o pote de Watt”. Essa linguagem vazia, que leva a uma conversa infinita, é um dos pilares da literatura do pós-guerra, principalmente daqueles autores que Martin Esslin conceituou de absurdistas. Murphy e Watt anunciam o impacto da obra futura de Samuel Beckett e demonstram uma crescente radicalização do escritor, em todos os planos da criação literária.
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