Em 1954, Vinicius de Moraes encerrava seu poema A Morte da seguinte maneira: “Dos homens, ai dos homens/Que matam a morte/Por medo da vida”. Sessenta anos depois, Juçara Marçal nem sequer cogitou matar a morte. Ao contrário, a cantora decidiu encará-la de frente e usá-la como o fio condutor de seu primeiro disco solo, lançado hoje na internet com o nome Encarnado.
Depois de discos com os grupos A Barca e Vésper, a intérprete teve presença marcante nos últimos anos em álbuns de artistas independentes, como Metá Metá (trio formado por ela, Kiko Dinucci e Thiago França), Rodrigo Campos (Bahia Fantástica), Criolo (Nó na Orelha), Thiago França (Malagueta, Perus e Bacanaço), Emicida (O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui), Cacá Machado (Eslavosamba), entre outros.
Agora, em seu disco, Juçara reúne canções inéditas e regravações de compositores com quem ela está acostumada a trabalhar, como Dinucci, Campos, França, Romulo Fróes, além de Douglas Germano (de quem ela já gravara músicas em álbuns anteriores) e de nomes como Tom Zé, Itamar Assumpção (1949-2003) e Siba.
Acompanhada por Kiko Dinucci (guitarra), Rodrigo Campos (guitarra e cavaquinho) e Thomas Rohrer (rabeca), Juçara também gravou uma faixa de sua autoria, Odoya. Sobre a morte, representada no álbum de diversas maneiras e pontos de vista, a cantora diz que a temática lhe apareceu com mais clareza no meio do processo de concepção e gravação do disco.“Não pensei em fazer um disco sobre a morte. Foram surgindo músicas que se mostraram com uma integridade entre elas que tinha a ver com a morte, não foi um projeto a priori”, explica Juçara. “Mas tem a ver também com o fato de eu ter esse tema como uma coisa que me interessa, que me intriga. É essa coisa misteriosa, de você achar vida nesse momento, é como um grito de vida diante disso que é inevitável”, completa.
Encarnado, que tem previsão de ser lançado também em CD físico em abril, foi bancado pela própria Juçara. “É tudo Às Próprias Custas S.A., até nisso o Itamar me inspira”, brinca a cantora, citando o disco de Itamar Assumpção, figura marcante da Vanguarda Paulista ao lado de nomes como Grupo Rumo, Premeditando o Breque, Arrigo Barnabé, entre outros que influenciaram Juçara nos anos 1980.
Em ‘Encarnado’, Juçara Marçal aponta em direção inesperada e nada convencional
No fim de 2013, quando Juçara Marçal entrou em estúdio para gravar aquele que seria seu primeiro disco solo, a morte lhe bateu na porta 12 vezes, em forma de canção. Embora a própria cantora diga que o “tema base” apareceu no meio do processo de feitura do álbum, o assunto já lhe fisgara havia muitos anos.
Hoje com 52 anos, formada em Jornalismo e em Letras pela USP, ela defendeu em 2000 sua dissertação de mestrado sobre o memorialista mineiro Pedro Nava. O motivo? “O jeito de ele escrever faz você experimentar algo parecido com a morte, nos leva numa espécie de transe que você tem a sensação da passagem, que é o ‘não está nem lá nem cá’, a experiência da morte possível. Intrigava tentar entender que foco narrativo é esse que consegue transportar para esse outro lado, viajei muito nessa história”, lembra Juçara.
Na época, a cantora fazia uma série de shows com A Barca, banda da qual participava desde 1998, além do grupo vocal Vésper, que integra desde 1992. Até Juçara chegar a Encarnado, primeiro álbum solo, foram quatro discos com o Vésper e dois com A Barca, com quem ela lançou ainda as caixas Trilha, Toada e Trupé e Coleção Turista Aprendiz.
Trabalhos muito diferentes do atípico Encarnado, como define o compositor Romulo Fróes no texto de apresentação do álbum. “Mais do que um apanhado de sua longa trajetória artística, é quase uma nova estreia, apontando em uma direção arriscada e inesperada, inimaginável até para aqueles que acompanharam seu longo percurso até aqui”, escreve Fróes.Para não dizer que houve um salto brusco de Juçara entre o tradicional (de A Barca e Vésper) e as experiências mais agudas de Encarnado, os discos em parceria com Kiko Dinucci (Padê, em 2007) e, principalmente, os dois do Metá Metá, trio formado por Juçara, Kiko e Thiago França, de 2011 e 2012, já indicavam o tipo de canto e interpretação que ela buscava: a interação e o diálogo com os instrumentos de modo nada convencional.
Nesta linha de pensar na morte como um renascimento, como uma reinvenção de si mesma, Juçara pinçou o título do álbum, Encarnado, de um verso da inédita Queimando a Língua, de Romulo Fróes e Alice Coutinho. “Sua boca, seu dente/E o encarnado/Que corta e desmente/Meu samba armado.”
“A palavra encarnado é muito múltipla e fazia sentido em termos de repertório e de sonoridade. Tem a ver com a morte, com o visceral, pode ser no sentido de encarnar em algo, no sentido de obsessão, de encarnar tirando sarro, vários significados”, diz ainda Juçara.
E a conversa constante com o instrumental foi justamente o mote do disco novo de Juçara Marçal, mais até do que o tema da morte, que lhe apareceu no meio do processo de criação. O diálogo que Juçara buscava se daria com o cruzamento das guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos.
“Eu não tinha nenhuma preocupação com o disco solo. Quando gravei Padê com o Kiko, não pensei ‘vou gravar um disco’, o encontro me levou a registrar. E isso aconteceu de novo. O mote principal era aquele lance da guitarra dos dois (Kiko e Rodrigo)”, afirma a cantora se referindo à trama entre a guitarra mais suja e ruidosa, com “riffs de influência punk” de Kiko, e as “melodias elegantes e precisas” de Rodrigo, como define Romulo Fróes.
“No começo, por serem os dois do grupo Passo Torto, a brincadeira era que eu ia fazer um disco chamado Estudando Passo Torto, brincando com o lance do Tom Zé, de quem eu sou superfã”, se diverte Juçara sobre a série de discos Estudando o Samba (1976), Estudando o Pagode (2005) e Estudando a Bossa (2008), de Tom Zé.
O compositor, aliás, é um dos que tiveram músicas regravadas por Juçara em Encarnado. No álbum, lançado hoje gratuitamente na internet (www.jucaramarcal.com), ela interpreta 12 canções, entre inéditas e regravações, incluindo Não Tenha Ódio no Verão, do álbum Tropicália, Lixo Lógico, de Tom Zé, em 2012.
“Do lado Juçara, a voz resplandecendo pela matéria e o discernimento pelo espírito. Do lado Kiko, uma rachadura obtida no samba através de um estilo de arranjo inesperado. A ousadia dele e o discernimento dela podem abrir uma janela para os dois. Rendo-me”, diz Tom Zé.
Outros que tiveram músicas regravadas por Juçara no álbum foram Itamar Assumpção, com a sua canção-falada E o Quico? (do disco Sampa Midnight, de 1983), sobre o diálogo com assombrações, e Siba, de quem a cantora interpretou, de forma diferente da gravação original, a canção A Velha da Capa Preta (do disco Toda Vez Que Eu Dou um Passo, o Mundo Sai do Lugar, de 2007), em que a morte aparece em sua representação mais clássica, vestindo mortalha e empunhando uma foice.
“Até perguntei para o Siba se ele tinha alguma inédita, mas a minha maior preocupação era a de revelar a canção, mesmo sendo uma já conhecida, revelar pela sonoridade, pela conformação (das duas guitarras com a rabeca de Thomas Rohrer e com a voz)”, explica a cantora.
Ainda no grupo das regravações, ressignificadas e desapegadas de gêneros pelo canto de Juçara, aparecem Damião (Douglas Germano/Everaldo Ferreira da Silva), gravada anteriormente no álbum Ori (2011), de Germano, Pena Mais Que Perfeita (Gui Amabis/Regis Damasceno), do disco Trabalhos Carnívoros (2012), de Amabis, e João Carranca (Kiko Dinucci), samba que encerra Encarnado de forma mais tradicional, como respiro após as 11 faixas anteriores.
Inéditas. Entre as inéditas, a morte reaparece novamente em Velho Amarelo (Rodrigo Campos), quando um homem vai para um pelotão de fuzilamento e imagina poder escolher dia, local e a circunstância em que vai morrer (“Quero morrer num dia breve/Quero morrer num dia azul/Quero morrer na América do Sul”).
“Juçara é uma artista que traz no canto o antagonismo, o paradoxo. Paz e inquietude, amor e ódio, fraternidade e sexo, vida e morte, tudo convive harmoniosamente no caos de Encarnado”, comenta Rodrigo Campos.
Ainda entre as inéditas, estão os versos impactantes de Ciranda do Aborto (Kiko Dinucci), precedida da vinheta Odoya, de autoria de Juçara, e seguida de Canto pra Ninar Oxum, de Douglas Germano. “Um amigo me falou algo legal sobre essa música do Kiko, disse que ‘é horrível’, porque ela é belíssima, mas é da ordem do horror.”
“Em Encarnado, Juçara participa definitivamente na criação do trabalho, ao contrário do que outras cantoras fazem botando o som apenas como um pano de fundo, uma rampa para o glamour de diva. Juçara não é cantora nesse sentido, é uma artista, seu compromisso é com a arte”, acrescenta Dinucci.
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