Marcamos uma conversa de vídeo com Madelein “Gloria” Månsson, mais conhecida como DJ Gloria, num final da tarde na Suécia, que corresponde ao meio-dia no horário do Brasil. Ao atender, a imagem de Gloria surge na tela, radiante. Ela usava uma jaqueta bomber estampada em vermelho e rosa com óculos de grau azuis, criando um belo contraste com seus cabelos brancos. Mas é o grande sorriso que mais chama a atenção. Aos 79 anos, Gloria parece realizada.
E não é para menos. Nomeada a DJ mais idosa da Suécia, Gloria ficou famosa em seu país e tem uma legião de fãs. Ao Estadão, ela conta sua história inspiradora, permeada por reviravoltas e, sobretudo, coragem para inovar.
Ainda jovem, começou a carreira como modelo e, posteriormente, firmou-se como designer de moda. Aos 50, venceu um concurso de modelos de mais de 40 anos. Após os 60, aprendeu aeróbica, cursou educação física, passou a discotecar e hoje é proprietária de uma boate voltada para o público 50+.
Começou a carreira nas pick ups há pouco mais de 15 anos, após o luto pela morte do marido. Buscando um ponto de encontro em comum, criou sua própria “balada” – permitida apenas para o público maior de 50 anos. “As pessoas precisam mostrar identidade para entrar”, diz.
E os lugares são disputados. Muitos suecos já ouviram seus setlists, que vão de sucessos de Elton John a Flowers, hit de Miley Cyrus, onipresente em 2023. “Vou intercalando os bpms [beats por minuto] e consigo encaixar vários ritmos diferentes”, explica, mostrando que entende do assunto.
Toque do Brasil
Antes de pensar em se tornar DJ, ainda nos anos 1980, ela morou no Rio de Janeiro. Veio para o Brasil como turista e decidiu que voltaria para ficar, “talvez por um ano”, conta. Não contava se apaixonar por um brasileiro, seu primeiro marido, com quem teve uma filha, Anna, que hoje é sua parceira de negócios.
Por aqui, aplicou sua expertise como designer de moda para produzir roupas destinadas à comunidade sueca que vivia no País. Do ex-companheiro, guarda boas lembranças. “Ele era muito diferente dos suecos. Um macho man, sempre com um sorriso, uma boa história, irresistível”, conta. E se apaixonou também pela música que, para ela, é “a mais maravilhosa do mundo” (veja o vídeo acima).
Recomeços
Quando a filha tinha 3 anos, o casamento chegou ao fim e Gloria voltou para a Europa. Casou-se novamente – com um sueco, dessa vez. A vida seguiu seu curso até o marido ficar doente e ela dedicar nove anos ao seu cuidado. O parceiro não resistiu e, após a morte dele, em 2009, Gloria se viu deprimida.
As pessoas queridas, em um movimento clássico, recomendaram que ela entrasse para uma aula de ginástica. Ela concordou, mas a primeira experiência não foi boa. “Eu odiava as músicas, o lugar”. Depois, sentindo-se deslocada, matriculou-se em aulas para o público sênior.
A segunda experiência foi tão deprimente quanto a primeira. “Logo, busquei me especializar para poder ensinar ginástica a pessoas da minha idade”, conta.
Aos 62 anos, impelida a investir neste público, no qual ela também se encaixava, decidiu voltar a estudar e fez um curso de educação física. Chegou a gravar DVDs onde ensinava exercícios focados no público da terceira idade.
Suas aulas foram um sucesso, ela enfatiza, muito por causa da música que colocava para tocar durante os exercícios. “Eu alternava as músicas de acordo com o ritmo e os movimentos”, conta.
Ali, mais uma nova carreira começava a surgir no horizonte.
Rock, DJ
Ao voltar a estudar, Gloria também passou a conviver mais com jovens. Chegou a acompanhar seus novos amigos em festas, sem esconder o sentimento de inadequação. O público costumava beirar os 20 anos e as boates sempre abriam muito tarde. Ela até implica com o termo “boate” [club, em inglês]. “Me avisaram que não se fala mais ‘discoteca’. Pois eu falo!”, enfatiza. Talvez isso também tenha a incentivado a criar uma festa do seu jeito.
Sempre apaixonada por música, ela aprendeu a discotecar e começou a tocar tudo o que gostava, de hits de outros tempos até os mais atuais. “Tenho milhares de músicas no meu computador. Em cada festa, toco algo diferente”, conta.
A boate - ou, discoteca - que tem em sociedade com a filha, Anna, é exclusiva para maiores de 50 anos e as festas começam às 18h. Mas, nas edições itinerantes, toca para um público variado. A DJ conta o que a fez idealizar esse conceito inicialmente exclusivo:
“Essas pessoas não dançam há tantos anos... E, quando eles saem... os pais sentem vergonha de dançar perto dos filhos e os filhos definitivamente não querem dançar com os pais. Porque eles ficam loucos!”, conta.
Após 14 anos sendo professora de atividades físicas, parou de dar aulas para se dedicar à carreira de DJ que, cada vez mais, ocupa e distrai os seus dias. “É tão divertido quando toco, todos sorriem, batem palmas”, diz, enfatizando que esse jeito espontâneo não é o forte dos suecos. “No dia seguinte, eu estou muito cansada, mas muito feliz”.
Percebi uma lacuna de mercado: nós não tínhamos lugar pra ir. Quero provar que não estamos mortos porque temos 80 anos. Nós também lemos, viajamos, dançamos
Pergunto qual conselho ela daria para quem precisa dar uma nova cor à vida, assim como ela fez tantas vezes. “Dancem!”, ela diz. “Mexam-se! Dançar é importante pois libera endorfina, que nos mantêm animados. Pode ser em casa, sozinho, ou em um clube. Quando acabar a noite, você estará mais feliz, eu garanto”, diz.
Nossa entrevista acontece em inglês mas, no vídeo gravado a pedido do Estadão, Gloria opta por conselhos em bom português.
“Me falaram que não se fala mais ‘discotecas’. Pois eu falo!”
Inspiração
Gloria é exemplo para pessoas que querem se reinventar, seja em qualquer fase da vida. Ao notar e testemunhar que idosos - sobretudo, mulheres – estavam inseridos em menos espaços, Gloria rompeu seus próprios paradigmas. Passou a ocupar lugares considerados atípicos e, assim, inspirar outras. Experimentou a carreira fitness, venceu um concurso de modelo, criou sua própria festa e passou a discotecar – tudo isso após os 50.
Hoje, não deixa de surpreender que DJ Gloria esteja prestes a completar 80 anos, fazendo o que lhe dá prazer. Discotecar, passar mais tempo com a família, exercitar-se.
Durante a entrevista, um barulho mostra que ela não está sozinha. “Me desculpe, meu cachorro está querendo passear”, disse, mostrando mais uma atividade pela qual é dedicada.
Para não atrapalhar o passeio, faço uma última pergunta: “Qual música não pode faltar no seu set?”. Ela responde sem hesitar: I Will Survive, de Gloria Gaynor. “É minha música da sorte”, diz.
A canção universal sobre celebrar os recomeços tem sua mensagem, novamente, ressignificada. Eis o poder da boa música – estar sempre à frente de seu tempo.
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