Imagine a seguinte situação. Cansado, em uma sexta-feira, você resolve visitar um bar novo, conhecido por ter um ambiente relaxante com luz baixa. Chegando lá, porém, não se depara com um jazz tocando ao fundo: é um heavy metal. Agora, pare e pense: o quanto a sua visão sobre o lugar ou até sua vontade de permanecer por lá durante toda a noite mudam com a simples escolha de uma playlist?
Se a música pode ser confundida como um mero detalhe na experiência ao se visitar determinado espaço, a ciência já comprovou que ela tem um papel importantíssimo. Vários estudos, nacionais e internacionais, comprovam que o som ambiente tem um enorme impacto até na nossa vontade de comprar mais quando visitamos determinada loja ou restaurante – há até os que mostraram que a influência chega até ao sabor dos alimentos consumidos.
Uma pesquisa feita pela Soundtrack Your Brand, empresa que cuida da identidade musical de marcas, e o Swedish Retail Institute analisou, em 2020, 2 milhões de vendas para investigar o impacto da música em restaurantes. O resultado mostrou que tocar músicas que refletem os valores de certa empresa, e não apenas tocar músicas aleatórias, é a receita para vendas mais altas porque gera sentimentos positivos nos consumidores.
E é por esse motivo, por exemplo, que as lojas de departamento apostam tanto em uma trilha sonora com músicas pop em um ritmo agitado: a ideia é criar uma vontade de comprar rápido, e o máximo possível. Andrey Mendonça, professor de filosofia e estudos comunicacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), explica que músicas aceleradas “estimulam nossos sentidos” e “aceleram o nosso desejo”.
Seria muito difícil, por exemplo, entrar em uma loja de departamento e estar tocando um jazz, porque, aí, a ideia seria que você relaxasse. Você não iria comprar nada, só experimentar. Mas um ritmo acelerado também acelera você, e acelera o desejo por essa completude que buscamos no consumo.
Andrey Mendonça
A música tem poder de manipulação?
Andrey comenta que a música, por ser uma arte milenar, desenvolveu uma forte influência e capacidade de alterar os estados da consciência. Foi na era do consumo, após a Segunda Guerra Mundial, porém, que ela passou a ser parte da experiência do consumo. Segundo ele, o álbum conceito dos Beatles, dos anos 1960, foi o que exerceu um impacto especial na maneira como nos relacionamos com o consumo da música.
Por ter tanta influência em nós, as canções podem exercer certa manipulação, mas, segundo o professor, isso não quer dizer, necessariamente, que elas são usadas para o mal. Na verdade, elas podem ir ao encontro de nossas necessidades. “A música, por iniciativa humana, vai, muitas vezes, expressar algum estado de espírito, algo que nós estamos sentindo e que, por vezes, não conseguimos colocar em palavras”, diz.
A neurocientista Vanessa Clarizia Marchesin, professora do curso de Ciências do Consumo da ESPM, comenta que a Big Data (a análise de dados contidos nas redes sociais, por exemplo) é, atualmente, muito usada por profissionais de marketing para satisfazer seu público-alvo – e, nesse sentido, usar as músicas “certas” para manipular o desejo de compra. A música, se combinada com a memória, é um estímulo ainda mais potente.
Como exemplo do poder dos sons do ambiente, a neurocientista cita um famoso estudo com vinhos franceses e alemães. Para tentar aumentar as vendas, um supermercado deixava os vinhos franceses mais visíveis e tocava músicas francesas em determinado dia. No outro dia, colocava os vinhos alemães mais à vista e a música que se ouvia era alemã.
O resultado? Houve um aumento expressivo na venda de vinhos franceses ao som da música francesa. Da mesma forma, os vinhos alemães venderam mais ao som da música alemã. É claro que uma pessoa que não costuma beber não vai ser tão influenciada, mas, segundo a professora, basta ter memórias afetivas com a França ou a Alemanha para já sentir vontade de ficar mais no estabelecimento em que esse tipo de música está tocando, por exemplo.
“Nós somos uma esponja”, comenta Vanessa. “Nós somos sugestionáveis. Porém, a sugestão também tem que estar baseada no meu repertório. Porque, se eu nunca ouvi essa música, ela não me representa nada, não se conecta com a minha memória e não é um estímulo potente.”
Música para quem quer ouvir
No Brasil, já há agências especializadas, inclusive, em criar uma identidade musical para marcas: seja playlists ambientes ou rádios criadas para tocar em certos estabelecimentos. Uma delas é a Tecla Music Agency, que já atendeu marcas que vão do Outback à Droga Raia.
“Tudo hoje em dia é musicado”, diz Paulo Sattamini, diretor de criação da agência. O trabalho da empresa, como ele explica, é transformar elementos característicos de determinada marca em música – sem, necessariamente, pensar em gêneros musicais - mas em “moods” (”estados de espírito”).
“Se uma marca é solar, que músicas traduzem isso? São músicas mais ‘para cima’, mais ‘felizinhas’? Se a marca é mais chique, mais luxuosa... que tipo de música podemos usar para traduzir isso?”, questiona Sattamini.
Como exemplo do poder da música, Eduardo Boorhen, líder de novos negócios da Tecla Music Agency, aponta que algumas modalidades esportivas até proíbem que atletas escutem músicas em competições, já que ela altera as capacidades de consciência e estimula a força.
E, da mesma forma que a música certa pode ajudar, a errada pode até repelir.
“A música certa, às vezes, não vai te chamar a atenção”, comenta Paulo. “Você vai ver que aquilo ali, além de outros fatores, não vai te incomodar. Mas, se você chega e tem uma coisa errada, vai te repelir, ou não vai ser uma experiência tão agradável.”
Leia também
Não é possível, porém, estabelecer “fórmulas” de músicas que são um consenso, como diz Vanessa Marchesin. Ela dá uma experiência pessoal: não consegue ficar em um lugar que toque um ritmo que se assemelha a uma música tocada durante a cerimônia de cremação de sua sogra, vítima de câncer. “Me dá arrepio, me dá vontade de chorar. E eu fico péssima”, conta.
Da mesma maneira, pessoas que sofrem de síndrome do pânico, por exemplo, podem associar determinados ritmos a traumas. “A nossa memória é afetiva e tem alta carga emocional. E a música, às vezes, é uma expressão de uma emoção, de algo que a pessoa canta. Se isso se sincroniza com a minha ‘questão elétrica’ interna, é quase que transformar [a música] em uma certa perenidade, uma ressonância”, diz.
Lugares sem música também afastam ou atraem?
A música, apesar de ser um elemento importante em determinado ambiente, não é um fator determinante: dependendo da proposta, há locais que não se utilizam das canções. Como exemplo, Eduardo Boorhen cita museus.
Mas há risco de estranheza se não for intencional. “Se a identidade do espaço for não ter música, o silêncio encaixa. Mas é uma coisa que tem que ser pensada”, afirma Paulo Sattamini.
Vanessa comenta que outros sentidos também devem ser estimulados para que a experiência em determinado espaço seja positiva ou negativa. O olfato, diz ela, é o único dos sete sentidos que não passa por nenhuma “filtragem” no cérebro. “ [Os aromas] vão direto para a área das emoções e da memória”, diz.
Já para Andrey Mendonça, é difícil se proporcionar momentos de silêncio, especialmente se pensarmos que até na natureza há certa musicalidade. “Se eu decido tirar um tempo e ficar em um lugar afastado, fazer um roteiro, de repente, no cerrado brasileiro... Será que os sons que a natureza produz – da cachoeira, de um riacho, dos animais – também não são recebidos pelo nosso cérebro como uma musicalidade? Ou seja, como uma forma de aproximação de algo que seja transcendente, fora de nós e que esteja na natureza?”, questiona.
No âmbito do consumo, a música se torna um elemento onipresente em uma sociedade hiperativa. “Estamos ouvindo e nos expondo o tempo inteiro. Temos pouco tempo para silenciar e ouvir a nós mesmos”, afirma Andrey.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.