Recentemente, Alaíde Costa, 88 anos, e Fernanda Montenegro, 94, se encontraram nos bastidores do espetáculo Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir, em São Paulo. Em um rápido papo nos bastidores, a atriz fez uma observação totalmente pertinente ao canto de Alaíde: “Você não dispensa a dramaticidade dos versos”.
Alaíde, que agora lança o álbum E O Tempo Agora Quer Voar (Samba Rock Discos), é isso mesmo: uma cantora que, pegando emprestada uma definição da própria Fernanda sobre o ofício de atriz, não se conforma em ser apenas ela. Ou, no caso, somente em afinar as notas e acompanhar a melodia. Alaíde quer - e sempre quis - mais.
“Desde cedo entendi que precisava colocar sentimento em tudo que cantava. Só não sei te dizer como isso se deu”, diz a cantora em conversa com o Estadão. E os olhos quase sempre fechados em suas apresentações, às vezes, durante toda a música? Para onde guiam a cantora? “Meu filho, não sei te explicar também. Passa um filminho na minha cabeça”, diz Lala, como é chamada pelos amigos, indicando, sem verbalizar, que seu negócio é mesmo cantar e não falar.
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Uma das já festejadas canções do recente lançamento, o samba-canção com melodia de Caetano Veloso e letra de Emicida, Foi Só Porque Você Não Quis, tem história afetiva. A faixa remete ao álbum Coração, lançado em 1976 por Alaíde, com Milton Nascimento como produtor.
Na época, Alaíde e Milton foram à casa de Caetano logo pela manhã para pedir uma canção. “Caetano está dormindo”, receberam como resposta. Tempos depois, Caetano reclamou sua ausência no disco. “Se você não entrou no meu ‘Coração’ foi porque não quis”, devolveu Alaíde.
Agora, Emicida usou o verso na canção assinada com o compositor baiano. “Eles me colocaram na parceria. Esse verso é meu. Fiquei muito feliz”, diz Alaíde, orgulhosa.
E O Tempo Agora Quer Voar tem mais de Alaíde. Bilhetinho, outra canção de Emicida, essa, ao lado de Luiz Ribeiro e Rubel, volta ainda mais no passado e encontra a cantora ainda na adolescência, quando começou a cantar, trocando bilhetinhos com alguma paixão que se perdeu no tempo. Mais uma a definir seu modo de ser: “Meu mundo é um bilhetinho de amor”.
A afetividade de Alaíde foi capaz de criar pontes entre gerações aparentemente distantes e dissonantes. Emicida, também produtor do álbum ao lado de Marcus Preto e Pupillo, apresentou uma melodia de Gilson Peranzzetta, músico e arranjador que trabalhou com a cantora na década de 1970, para o rapper paulistano Rashid. No fim, o próprio Emicida deu os ajustes finais. Dessa forma, nasceu Meus Sapatos.
Embora seja em sua essência uma canção de amor, a estrofe “A solidão lá de São Paulo/ Imensidão na qual me calo/ E sonho alto sem ter sapatos de cristal” traz muito de Alaíde - e dos rappers também.
“A sensibilidade de Alaíde ao interpretar eleva a letra a um novo patamar de capacidade de acessar emoções. Pensei muito sobre sua trajetória enquanto escrevia Meus Sapatos. A canção fala sobre caminhos percorridos atrás de um amor - e esse amor também é a música”, confirma Rashid ao Estadão.
Essa é a primeira vez que o rapper escreve para um intérprete. “Foi o rap que me instigou a conhecer os mestres e as mestras da nossa música. E assim Alaíde entrou no meu caminho”, completa.
Carioca, Alaíde, nome presente na fundação da bossa nova, veio à capital paulista na década de 1960 para tentar a carreira quando a turma da zona sul carioca a esqueceu em meio ao sucesso do gênero. Como companheiros ela teve Johnny Alf, a quem dedica o disco, e a amiga Claudette Soares, a ovelha desgarrada da bossa que gravou tropicalistas e Roberto Carlos e a quem Alaíde chamou para um dueto em outra faixa do álbum, Suave Embarcação.
“Comi o pão todinho que o diabo amassou”, diz Alaíde, remetendo à canção Aos Meus Pés, de João e Francisco Bosco, presente em seu disco anterior, O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, de 2022, marco dessa celebração tardia em torno do nome da cantora.
“Cantei em barzinhos para me sustentar, sim [já depois de famosa]. Nunca pensei em desistir. Sempre pelo amor à música”, diz Alaíde, sem qualquer ponta de ressentimento.
A dificuldade não a fez recuar nem meia nota de seu objetivo: cantar o que julgava de qualidade e o que tocava seu coração, mesmo que alguns não quisessem entrar nele.
Até hoje é assim. Não importa se a música é de Caetano, Emicida, Rashid, Marisa Monte, Carlinhos Brown ou Ronaldo Bastos - os três últimos também estão em Foi Só Porque Você Não Quis.
Um exemplo? Ata-me, canção de Junio Barreto, lançada como single do álbum em setembro de 2023, quase ficou de fora do disco. Alaíde a julgava “rápida” demais. “Pensei: como eu vou cantar? Adaptei para o meu jeito”, conta. “Eu falo lento. Não dá para cantar muito acelerado”.
Foi Só Porque Você Não Quis é o segundo álbum de uma trilogia pretendida por Emicida, Preto e Pupillo e já acalentada por Alaíde. O próximo disco, porém, ainda depende de questões mercadológicas. Ter Alaíde em shows e peças publicitárias é uma coisa. Colocar dinheiro em um disco é outra. O mercado, sempre imediatista, ignora que é a obra da cantora, as canções que ela grava, é o que vai ficar para as futuras gerações.
Encantada com o momento ao qual ela define como “o maior reconhecimento de sua carreira”, Alaíde diz à reportagem querer apenas seguir “feliz”. “E cantar, cantar, até quando eu puder. Até quando Deus me der esse privilégio”.
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