O violonista Raphael Rabello compôs relativamente pouco. Número exato: 18 músicas, que receberam letras de Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc. Perfeccionista, dedicou-se ao estudo do violão, ao esgotamento dos recursos do violão, à exaustão das possibilidades do instrumento. Só quando alcançou o rigoroso virtuosismo, dispôs-se a compor. A primeira ouvinte de sua obra foi sempre Amélia Rabello, a irmã cantora. Amélia chegou a gravar três das músicas de Raphael. Aldir Blanc gravou uma, em seu disco 50 Anos. As outras 14 peças jamais foram gravadas. Foram apresentadas - sempre na voz de Amélia - em alguns shows. Quem não viu os shows não conhece a obra. O resgate do tesouro dá-se agora. Amanhã e quarta-feira, Amélia Rabello lança, no Teatro Clara Nunes, no Rio, o CD Todas as Canções. Em 11 das 18 faixas, está acompanhada pelo irmão: voz e violão. Essas 11 músicas faziam parte do repertório de um espetáculo que Raphael e Amélia fizeram, em 1993, no mesmo Teatro Clara Nunes. Para efeito de registro, o show foi gravado, em fita cassete mono - era só um registro, mesmo. Até porque Amélia pensava em entrar em estúdio e gravar aquelas canções. Raphael morreu, trágica e precocemente, aos 32 anos, em abril de 1995. Amélia perdeu um pouco da vontade de continuar cantando - chegou a lançar um disco, depois da morte do irmão, e parou. Teve vontade de retomar o canto no ano passado. Pensou, naturalmente, em gravar as músicas de Raphael. Mas havia aquela fita, com o violão dele no acompanhamento. E há as facilidades da tecnologia, que permite o restauro dos mais precários registros. Aquele era precário - mas era uma preciosidade. Submetida a filtros e a sofisticados tratamentos acústicos, a fita permitiu a recuperação, com qualidade ótima, de 11 números. Amélia pensou em lançar o disco assim, com aquelas 11 canções. Mas Luciana Rabello, irmã, cavaquinhista, lembrou que faltavam poucos números para que o CD de Amélia reunisse toda a obra do irmão. Assim, Amélia adicionou a Todas as Canções duas músicas que havia lançado num disco anterior - o samba Camará e a canção Salmo (ambas com letra de Paulo César Pinheiro). E entrou em estúdio para gravar, com arranjos de Maurício Carrilho e de Dininho, as outras cinco. Duas delas estavam sem letra. Paulinho Pinheiro providenciou as palavras para a faixa que dá título ao disco e para a Canção do Milagre. "Esse é um trabalho heróico", define Aldir Blanc. "Ninguém conhece o compositor que Raphael foi, e que estava em evolução, estava em ponto de partida", conta. "Pouco antes de morrer, ele me fez uma visita. Andava entusiasmado com as marchas-rancho de Radamés Gnatalli. Queria compor marchas-rancho - queria compor muitas, fazer uma série. Era um entusiasmo só", lembra. "Eu sentia nele um potencial de compositor que ele mesmo não estimulava", acrescenta Paulo César Pinheiro. "Quando o conheci, ele tinha 16 anos. Vi nele o assombroso violonista que era, da escola do Meira e do Baden, e entrevi o compositor. Um dia, muito tempo depois, ele me deu uma música para pôr letra, Mulher da Vida. A partir dali, iniciamos o trabalho, interrompido, em plena expansão, pela morte de Raphael." Paulinho Pinheiro, como Aldir Blanc, acham que Raphael tinha tudo para tornar-se um dos maiores compositores do País, de todos os tempos. Mas não há nada de imaturo nas 18 canções que deixou. Muito pelo contrário, é um trabalho de extrema sofisticação melódica e harmônica, uma obra densa, que em alguns momentos faz lembrar a de Guinga - eles eram amigos, e foi Raphael quem apresentou Guinga a Aldir Blanc. "Não há nenhuma peça leve: é tudo maduro, parecendo até coisa de gente mais experiente, de mais idade", avalia Amélia Rabello. Até onde cresceria? "Ouço essas canções com prazer e dor", resume Paulo César Pinheiro. "Prazer pela beleza, dor pela perda e pelo que poderia ser acrescentado." O disco Todas as Canções sai pela gravadora Acari Records (www.acari.com.br). Os shows têm direção e luz assinadas por Ney Matogrosso.
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