Seria uma redução da espécie, e Erasmo Carlos sabia bem o que era isso, iniciar qualquer texto sobre sua existência considerando “o amigo de Roberto”, “o Tremendão”, um dos pais do rock brasileiro, o autor genial de Sentado à Beira do Caminho, o conquistador dos brotos dos anos 60 (ele mesmo dizia contabilizar mais de mil), um dos criadores da soul brasileira no início dos 70 com três álbuns irretocáveis ou o desenhista definitivo de uma era com Festa de Arromba. Talvez caiba agora relatar, antes dos feitos fonográficos que ilustravam sua sala em forma de discos de ouro e de platina, o homem. E Erasmo Carlos, nas pequenas coisas, era imenso.
Estávamos em sua casa em 2015, uma espaçosa residência na Barra da Tijuca, para uma entrevista que ele concederia sobre o show Meus Lados B, que faria em São Paulo, no Tom Jazz. Uma sacada genial e reveladora sobretudo a quem não se lembrava do tanto que ele havia feito para além das parcerias com Roberto Carlos e dos hits de rádio dos anos 80. Coisas dos discos Sonhos e Memórias, de 1972, ou da Banda dos Contentes, de 76.
Depois da entrevista, Erasmo pegou o violão e, atendendo a um pedido do repórter, se posicionou para cantar qualquer canção que escolhesse enquanto o fotógrafo faria uma rápida gravação em vídeo. Ele escolheu Gente Aberta, linda, do disco Carlos, Erasmo, de 1971, até que um avião com o ruído de 20 turbinas surgisse no instante em que estava realmente inspirado. “Pode parar, vamos fazer de novo”, disse o fotógrafo, sem nenhum jeito, para a fúria de Erasmo. “Porra, mas você me manda parar agora! Por que fez isso? Vai gravar um disco, por acaso?”
Explosões de Erasmo, embora essa tivesse até algum motivo para existir, eram raras, e a sua reação posterior a ela foi o que ficou. Ao sentir que o fotógrafo estava destruído com sua bronca, apagado e cabisbaixo, ele passou a agir como se estivesse disposto a tudo para reparar o estrago. Ofereceu café, suco, bolachas, contou piada e mostrou a casa. Esquecendo o repórter e a reportagem, oferecia o dedo mindinho como um menino querendo fazer as pazes. Não importava mais a matéria, o espaço no jornal, o show, a carreira, nada. Erasmo só não queria que aquele rapaz saísse triste de sua casa. E conseguiu. “Gente boa ele, né?”, comentou o fotógrafo. Sim, e também um pouco mais do que isso.
Erasmo teve foi muita resiliência, para usar uma palavra que sua geração não usava, desde que o amigo Roberto se tornou o gigante encastelado da Urca. Sobretudo a uma geração de jornalistas que chegaram na cena no pós 1990, ele se tornou uma espécie de porta-voz. Uma crueldade. “Roberto maltratou mesmo Tim Maia no início da carreira?” “O que você acha de Roberto ter mandado retirar a biografia dele das lojas?” “Por que Roberto não compõe mais?” “Como é Roberto na intimidade?”. A essas e outras questões que os arquivos guardarão como provas do quanto desperdiçamos Erasmo, suas respostas eram cordiais, com um “você deveria perguntar isso para ele” apenas nas entrelinhas. Erasmo tinha muito mais o que dizer, só bastava perguntar.
Os anos de 1970 foram, para Erasmo, o lugar onde ele encontrou o melhor de si. Isso segundo ele mesmo, em uma entrevista ao Estadão, rompendo com a ideia de que a Jovem Guarda teria sido imbatível em sua trajetória. Em projeção e dinheiro, sem dúvida deu JG, mas em verdade, talvez não. Por quê? “Eu gostava mesmo de fazer aquelas histórias com personagens suburbanos que passei a escrever nos anos 70. Mané João, Cachaça Mecânica. Tinha mais a ver com as minhas origens.” Quais das origens? Da primeira, pré Jovem Guarda, todo mundo sabe. Ou quase. Menino malandro que chegou a praticar pequenos assaltos na Tijuca, ele formou, em 1957, com Roberto e Tião Marmiteiro, o Tim Maia, a banda The Sputniks. Era fã de Elvis Presley e não lia nada que não fossem as notícias de esportes. Os chamavam de alienados, e eles eram mesmo.
Quando as coisas começaram a dar certo quase uma década depois e a TV Record precisou de um casal para ter um programa jovem na faixa aberta das tardes de domingo – seguindo a formato casais que Elis e Jair Rodrigues haviam consagrado com O Fino da Bossa – chamaram Erasmo e Wanderlea (depois de testarem algumas outras cantoras). Erasmo aceitou, um mas fez uma contra oferta, segundo as memórias de Manoel Carlos, o Maneco, então diretor do Programa Jovem Guarda. “Eu vou, mas se precisar dou parte do meu salário para vocês trazerem também outra pessoa, um amigo meu do Rio”. O amigo era Roberto Carlos.
Da segunda origem, pouca gente sabe. Afinal, foi preciso nascer de novo quando Roberto seguiu para a Itália, no Festival de San Remo, já com um pé fora da Jovem Guarda para retornar convertido em cantor romântico, em 1968. Sem a euforia do rock, com o programa extinto, Erasmo ouviu seu Elvis dos anos 70, Otis Redding, e decidiu mudar tudo também. “Quem me trouxe a soul music (para que ele a misturasse ao samba, ao calipso e à gafieira) foi Otis Redding. Ele e Carla Thomas gravaram um dos dez LPs mais importantes da minha vida, King & Queen, de 1967. Depois vieram James Brown e Ray Charles, o maior cantor do mundo”, disse na entrevista de 2015, antes de o avião passar.
Mané João, do álbum Sonhos e Memórias, se tornou um de seus épicos trágicos e suburbanos destes anos. A história se passa em uma gafieira, com Mané João morrendo depois de ser golpeado fazendo escorrer “muito sangue pra pouca ladeira”. Mais do que dois anos antes, quando fazia sua transição dizendo estar “sentado à beira do caminho que não tem mais fim”, ou em plena Jovem Guarda, cantando cartas e bilhetinhos de amor, sua fama de mal estaria melhor localizada também nos anos 70. Que o diga Roberto Carlos: “Roberto não gostava quando eu matava os personagens das músicas”, lembrou Erasmo, em 2015. “Ele dizia ‘pô, mas coitado do cara’. E eu respondia que a história era assim, que ele tinha de morrer”. Roberto insistia: “Mas livra a cara do cara, Erasmo”. E ele: “Não dá para livrar a cara do cara”.
A questão dos anos 70 a Erasmo, ao contrário dos 60, foi combinar com alguém que estivesse disposto a tocá-lo. Sua obra mais respeitada por DJs e pesquisadores está concentrada neste período, mas sua projeção sofre uma queda. Até aquele show de 2015, ele jamais havia apresentado ao vivo a ótima Maria Joana, por exemplo, uma homenagem à maconha feita com Roberto Carlos, vejam vocês, em 1971. “Claro que a censura implicou com a gente”, disse. E apenas recentemente havia reativado Dois Animais na Selva Suja da Rua, que Taiguara havia criado para ele e sua mulher, Narinha, também em 1971.
A sensibilidade diante do fotógrafo magoado é sinal de uma delicadeza que nem a fama venceu. Quando começaram a dizer que sua canção Cachaça Mecânica parecia um plágio de Construção, de Chico Buarque, pela métrica e pela temática, Erasmo passou a não dormir direito. “Eu tinha medo de ter feito algo sem querer e alguém pensar que eu havia agido de má-fé.” Seu desconforto durou até o dia em que o próprio Chico se pronunciou sobre o assunto. “Ele falou que não tinha nada a ver com plágio, e isso tirou um peso enorme das minhas costas.”
Elis Regina também maltratou seu coração quando começou a disparar contra “os alienados da guitarra elétrica”. Erasmo e Roberto, dois que “só faziam bobagens descartáveis”, segundo a cantora, se tornavam inimigos públicos número um de artistas de enorme prestígio no País, louvados pela crítica, por intelectuais e pelos universitários. Além de Elis, Geraldo Vandré, MPB-4, Edu Lobo, Jair Rodrigues e até um tiquinho de Gilberto Gil faziam passeata contra a guitarra elétrica dos dois amigos. Isso sem que eles tivessem dito um “a” contra ninguém. A angústia de Erasmo durou até 1970, quando ele foi convidado para assistir a um show de Elis. Sentado na plateia, ouviu a cantora que tanto o achincalhava nos anos 60 cantar As Curvas da Estrada de Santos com uma energia incontrolável. Erasmo chorou, e disse que só nesta noite entendeu que havia feito algo que poderia ficar para a história.
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