O efeito BTS no mundo atingiu um novo status com o último Grammy. O fato de não saírem com o prêmio de Melhor Performance de Pop ou Dupla pela música Dynamite provocou uma comoção nas redes imediatamente após a premiação e fez o que ainda poderia ser uma bolha, uma imensa bolha capaz de assistir só ao clipe oficial da música no YouTube, até a noite de ontem, por 927.372.811, explodir. O Grammy conheceu a fúria dos army, a forma como os fãs da banda são chamados, e ouviu acusações de ter sido injusto na premiação com postagens como: “O BTS continua quebrando recordes e o Grammy continua perdendo a relevância, quem realmente precisa de quem?”
O Grammy tem tido cautela demais com o BTS. Apesar de levar o grupo sul-coreano para cantar em outras duas edições, em 2019 e 2020, e de ter reservado a eles um inédito espaço nobre, antes do anúncio da categoria principal na edição de domingo (15), o maior mobilizador de massas da atualidade ainda não entrou no radar dos jurados da chamada Academia. Mesmo sob pressão dos army, eles escolheram, para a Melhor Performance Pop, Lady Gaga e Ariana Grande, que dividem a música Rain On Me. Um feat quase imbatível e uma performance de produção excepcional, mas de abrangência (e, falando a língua do Grammy, números importam sim) risível perto da k-band: 292.195.208, quase 600 milhões de views a menos.
O fato é que o BTS incomoda o Grammy por algumas razões. O grupo vem de um lugar do planeta que jamais havia pisado o tapete vermelho da instituição. Ele também é produto de um sistema, mas de um outro sistema, e isso incomoda a quem está acostumado a ser o único sistema. Quem conduz a usina BTS é a empresa Big Hit Entertainment, uma moderna plataforma de negócios sul-coreana fundada em 2005 pelo compositor e produtor Bang Si-hyuk, que cuida também da carreira de artistas como Lee Hyun e o grupo TXT. Em fevereiro, a nova potência dos negócios da música asiática se aliou à Universal Music para anunciar um novo supergrupo para 2022, quando os sistemas se encontrão. Por enquanto, o BTS é uma ameaça.
A bolha explodiu primeiro naturalmente dentro na Coreia do Sul, que está longe de ser a do Norte mas que segue diretrizes de uma cultura e uma política eminentemente conservadoras. Assim, foi corajoso que os meninos falassem de direitos LGBTQ, saúde mental e liberdade de expressão verbal e corporal logo que surgiram. Mas, ao saírem pelo mundo, nem os fãs perceberam o quanto é limitador o fato de usarmos ainda o termo k-pop para apresentá-los, como se fosse importante sempre localizá-los geograficamente. Só quando se fala do pop da Coreia do Sul e do Japão, com o menos planetário j-pop, que os nomes dos países vêm à frente do termo. E por que, sendo que suas músicas não são tocadas com kayagum nem trazem nada de tradições sul-coreanas como o arirang? Para delimitá-los e exotizá-los.
O BTS, enquanto isso, empilha superlativos para colocar o Grammy do ano que vem em um dilema. A resistência da premiação em consagrar um grupo que não tem origens no Ocidente – leia-se, território norte-americano – será flagrante e poderá abrir uma nova e populosa militância ainda adormecida por apenas não ter a natureza de gritar. Depois de atender às demandas raciais e de gênero, poderá, em última instância, ser acusada de praticar sinofobia se insistir em só chamar o BTS para cantar, usando-os para inflar sua audiência mas renegando-os às cercanias do k-pop.
Já aconteceu uma vez. Quando o pop latino ficou grande demais – não leia-se Brasil – o Grammy saiu-se bem. Criou o Grammy Latino em 2000 para abrigá-lo, inclusive aos brasileiros, e evitou embates desnecessários de J Balvi com Lady Gaga. Com a Ásia, é diferente. Não há um cenário abrangente que justifique um setor segmentado, não há como despachar o BTS para a categoria Global Music, a nova Word Music, que seria seu lugar por definição, e não é mais possível fingir que eles não existem. Dar espaço ao rap e às mulheres do R&B para vender pluralidade e justiçamento histórico é necessário, mas não é só. Libertador seria o Grammy reconhecer que o mais recente fenômeno inquestionável da música mundial não foi fabricado pelos Estados Unidos.
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