Análise: Roberto Leal merece uma estátua do governo português

Atuando no extremo oposto às angústias do fado de Amália Rodrigues, o vira de Leal usou os programas de auditório dos anos 80 como cavalo de Troia para entrar nos lares brasileiros e disseminar uma cultura em uma época em que ninguém por aqui sabia nada de Portugal

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Foto do author Julio Maria
Atualização:

Mais do que a divindade Amália Rodrigues, mais do que Mariza, mais que Carminho e bem mais que Antonio Zambujo, Roberto Leal foi quem levou para o mais distante dos quintais brasileiros a música de seu país num tempo em que o Brasil não consumia nada de Portugal. Havia-se escutado muito em 1973 com O Vira, de Luhli, com Ney Matogrosso e o português João Ricardo à frente dos Secos e Molhados, um sucesso estrondoso sobretudo entre as crianças. E ouviria-se muito mais de 20 anos depois, em 1995, com os Mamonas Assassinas gravando Vira-Vira, inspirada em A Festa Ainda Pode Ser Bonita, de Leal, mais uma vez absorvido com histeria infantil.

Leal em 2008, na Casa de Portugal Foto: JOSE LUIS DA CONCEICAO/ESTADÃO

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Sim, Roberto Leal se tornou um personagem fácil de programas dominicais que nem sempre prezaram por critérios de profundidade artística, mas foi aí que se fez a diferença. De Silvio Santos ao Faustão, de Gugu Liberato ao Ratinho, do Clube do Bolinha a Barros de Alencar, muitas vezes no Chacrinha, muitas vezes na Hebe, foi esse o cavalo de Troia com o qual a criança ruiva cheia de um gingado de pernas que sabe-se lá onde aprendeu entrava nos lares brasileiros para disseminar uma cultura inteira.

Mas o Portugal de Roberto Leal era outro, situado no inverso da angústia dos fados. O gênero sublime de Amália Rodrigues, talvez por seu acento dramático e seu canto ibérico de escalas árabes, nunca teve ambiente para prosperar nos trópicos festivos. O Brasil só descobre Portugal com Leal, a partir dos domingos em que ele entra nos lares dançando o vira com uma desenvoltura de passista de escola de samba. Sem estratégia para isso, sem turma nem movimento que o amparasse, o português, sozinho, passou a colher o que plantou vendendo mais de 20 milhões de discos desde a gravação de Arrebita. E uma geração cantava com um sorriso nos lábios “ai cachopa, se tu queres ser bonita, arrebita, arrebita, arrebita.” Lançando quase um álbum por ano de 1973 a 2016, propunha a conversa entre gêneros brasileiros e lusitanos, mas se saía melhor sempre que realçava o canto português.

Sua marca foi tão forte que o aprisionou. Leal será lembrado mais pelas alegrias que trazia em uma espécie de aura do que pelo conjunto de uma obra que deixa mesmo poucas canções na memória coletiva, apesar de uma extensa produção. Sua morte foi lamentada neste domingo por personalidades que vão do governador de São Paulo, João Doria, a amigos como o ator Miguel Falabella e a cantora Fafá de Belém. Mas deveria mesmo ser convertida em estátua pelo governo português. Sozinho, foi ele quem abriu as portal do Brasil quando ninguém por aqui queria saber de Portugal. 

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