Nos primeiros 16 segundos, o piano nos leva para sonoridades impressionistas. Os primeiros quatro compassos pertencem a Clair de Lune, a peça mais popular de Claude Debussy. E nossos ouvidos se enlevam quando a voz límpida começa a entoar “A lua girou, girou/traçou no céu um compasso”. Não há solavanco estilístico. Afinal, Debussy e Milton Nascimento se abraçam nesta linda e pouco conhecida canção do álbum Geraes, de 1976. Mônica Salmaso tem no piano requintado de André Mehmari seu parceiro ideal no álbum Milton (Biscoito Fino, 2022).
Prestes a completar 46 anos - em 22 de abril -, Mehmari é o compositor brasileiro que recebe, e entrega, o maior volume de encomendas no País. E sem respeitar gêneros. Ora é um CD de piano solo, ora com seu trio, e muitas composições para sala de concertos.
O volume de seus projetos para 2023 dá uma ideia da amplitude de suas competências. Lançou recentemente o álbum 21 Peças Líricas, miniaturas para piano solo compostas aos 14 anos, que define como “um amuleto que guardei com muito carinho desde a adolescência. Um retrato precioso daquele tempo de procuras e escolhas éticas fundamentais que iriam se refletir em tudo o que eu faria em música depois”.
É curioso que sua vida como compositor tenha se iniciado com encomenda de uma escola de música de Ribeirão Preto, onde morava. “O diretor queria um pequeno livro de peças tecnicamente ‘fáceis’ - mas com um assunto musical interessante, que fugisse das tediosas escalas dos métodos usuais”, conta. Elas levam títulos, como ele mesmo diz, “ligados a elementos essenciais da vida, como As Águas, O Vento, O Amanhecer, A Simbiose, A Floresta, Os Pássaros”.
Reconectando
Em 2022, com seu Steinway de concerto reformado, “depois de um ano tão intenso e ruidoso, tive a chance de me reconectar com minhas origens. Pensava no meu ambiente doméstico à época, o piano na sala, o cheiro da casa e da rua, minhas inquietudes e crenças”. O título geral remete às peças líricas do norueguês Edvard Grieg. Com elas comungam o raro atributo da música que leva o estudante a aprimorar-se do ponto de vista técnico, sem abdicar da musicalidade. Ou seja, prazer e aprendizado.
Não perca a conta. Em novembro, ele esteve no Carnegie Hall, em Nova York, assistindo no dia 19 à execução de sua suíte Portais Brasileiros 2; Cirandas, com João Carlos Martins regendo a Orquestra Novus NY em concerto comemorativo dos 60 anos de seu primeiro recital naquele célebre teatro nova-iorquino.
No mesmo mês, lançou o álbum Meu Brasil, ao lado do violoncelista Rafael Cesário. Seis músicas que são puro frenesi. Desfilam de um lado o baião, o frevo, o maracatu, de outro as dolentes valsa, toada e choro-canção. Misturam-se gêneros e estilos europeus com brasileiros, como mostrou Machado em O Machete: o violoncelista Inácio querendo compor um concerto enquanto o Barbosa arrasava as noitadas domésticas com seu machete (um ancestral do cavaquinho) transformando a sala de estar em baile.
Atualidade
Ele assenta seu credo artístico neste conto célebre. “Imagine”, entusiasma-se em entrevista ao Estadão, “Machado escreveu este conto em 1876 e ele possui uma atualidade espantosa para caracterizar a música brasileira”.
Machado é a estrela-guia de suas três óperas. A primeira, de 2020, é O Machete. Estreará em junho, no Teatro São Pedro. “Eu mesmo fiz o libreto, baseado no maravilhoso conto dele.” Feliz da vida, vai tocar cravo em cena e a qualifica como “ópera neobarroca”: “É fruto de muita reflexão sobre o Brasil e sobre tudo o que vivo em música”.
Flora, a Procura da Flor, cronologicamente sua segunda ópera, baseada no romance tardio Esaú e Jacó, estreou em novembro no Festival do Espírito Santo, em Vitória. “Pretendo compor uma trilogia de óperas machadianas. A terceira muito provavelmente em torno de O Alienista.”
Em dezembro de 2023 Antonio Meneses estreia o Concerto para Violoncelo e Orquestra encomendado pela Filarmônica de Minas Gerais. “E, neste momento, estou compondo um concerto para dois violões e orquestra para o Duo Siqueira Lima e a Sinfônica de Guarulhos.”
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