O fascínio que o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) provoca em quem se aproxima de sua obra permanece intacto. Ou melhor, cresce a cada momento. Seus heterônimos constituem uma galáxia, ou quem sabe um caleidoscópio, de um gênio que se multiplicou em outras “personas” públicas. Pessoa chegou a polemizar publicamente com seu heterônimo Álvaro de Campos. O respeitado crítico literário Harold Bloom atribui este fascínio ao seu próprio nome, “que significa ‘persona’ ou ‘máscara’”.
Em uma de suas cartas de 1935, ano de sua morte, o poeta escreve: “O que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenômeno da minha despersonalização instintiva (...) para explicação da existência dos heterônimos (...) conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo, viajo (...). Vou mudando de personalidade”. Nada a ver com os prosaicos pseudônimos, em que o autor usa outro nome, mas permanece essencialmente o mesmo. Não é exagero afirmar que Pessoa circula no rarefeito clube de outros iluminados, como – cito cinco ao acaso – Bach, Shakespeare, Beethoven, Goethe, Dostoievski. Dois entre os mais recentes apaixonados por Pessoa são músicos praticantes: uma jovem cantora catalã de 27 anos e um consolidado trompetista e compositor venezuelano de 41.
Refinada
Andrea Motis, na verdade, nem tem 27, só vai completá-los em 9 de maio, mas parece que está há muito tempo na estrada. Já gravou para a Impulse, mítica gravadora norte-americana de jazz, e estudou em Barcelona mesmo.
Além de cantar com uma voz pequena, porém refinada, à la Nara Leão, ela também é ótima trompetista. O empurrão internacional aconteceu quando foi elogiada pelo produtor Quincy Jones. Já gravou um álbum inteiro em português, com músicos brasileiros, lançado aqui em 2019, com preciosidades como Antonico, de Ismael Silva. E acaba de lançar o álbum Colors & Shadows com a big band da Rádio WDR alemã, gravado há um ano, com arranjos de Mike Mossman, no qual canta Iracema de Adoniran, em português.
Mas a minha atenção se fixou mais em Tabacaria. Sim, ela interpreta uma canção composta pelo também catalão Joan Mar Sanqué sobre os primeiros 24 dos 168 versos do célebre poema de Álvaro de Campos, dominado por uma atmosfera carregada, metafisicamente desolada. Chocam o otimismo de Andrea e o ritmo pulsante rápido do arranjo, transformando-o em algo parecido com Upa, Neguinho de Edu Lobo cantado por Elis. Vocês lembram?, o poema começa assim: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada”. Está certo que em seguida vem o verso “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Musicalmente, o resultado é ótimo. Dos 24 versos, Andrea canta os primeiros 9; declama os 15 restantes. E reserva tempo para um interessante solo de trompete.
Muito mais diferenciado é o tributo do trompetista venezuelano Pacho Flores em Heterónimos, peça de 11 minutos interpretada pelo trompetista carioca Fábio Brum, de 40 anos, ex-OSB, hoje morando em Valência, na Espanha. A faixa está no recém-lançado álbum Trumpet Music from Around the World (Naxos).
Estilos
Flores apaixonou-se pelas personas do poeta. E constrói em 11 minutos um mosaico de estilos, técnicas e “moods” diferentes, heterônimos musicais, só que do ponto de vista do intérprete. Todo músico, raciocina, é na verdade muitos. Como um ator, assume os heterônimos que cada compositor imagina, em cada criação. Uma ótima ideia, que se concretizou numa peça interessantíssima. Aqui cabe lembrar um pioneiro na criação de heterônimos, o compositor romântico Robert Schumann (1810-1856). Ao contrário de Pessoa, Schumann criou heterônimos não só gestados em sua mente como também criou nomes para pessoas de seu círculo mais próximo.
Heterônimos
Entre os primeiros, estão o introspectivo Eusebius e o arrebatado Florestan – Mestre Raro arbitra os conflitos estéticos entre eles. Tudo aconteceu por dez anos na revista musical em que Schumann era factótum e único autor. Uma heteronímia que, como em Pessoa, se estendeu a sua obra.
A peça de Pacho Flores convive numa bela amostragem de Fábio Brum da composição para trompete na América Latina. Ele toca nove instrumentos diferentes em criações dos brasileiros Douglas Braga, Gilson Santos e Dmitri Cervo.
Os demais são o argentino superabrasileirado Daniel Freiberg, o colombiano Juan Carlos Valencia Ramos e o espanhol Santiago Báez, que, além de acompanhá-lo ao piano, compôs Serendipia.
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