Em 2022, o Estadão reuniu na Sala São Paulo um grupo de jovens estudantes de violoncelo para entrevistar o grande nome brasileiro do instrumento, Antonio Meneses. Sobrava timidez para todos os lados. Dos alunos perante o ídolo, e também do ídolo, sempre com dificuldade para sair falando de si mesmo.
Mas o silêncio eventualmente se desfez quando a conversa parou de girar em círculos e chegou a um ponto comum a todos ali presentes: a paixão pela música. “Tudo o que você fizer na vida vai depender do amor que tem pelas coisas. Eu tive sorte de poder desenvolver cedo o amor pela música e entender que fazer música era como precisar tomar água”, disse Meneses, que morreu neste sábado, aos 66 anos.
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Parece algo trivial, mas não é, não no caso de Meneses. Ao longo de seus mais de 50 anos de carreira, ele fez da música a forma possível de se comunicar com o mundo. Em 2010, quando Luciana Medeiros e eu realizamos com ele uma série de encontros para uma biografia, pareceu, de início, difícil tirar dele as informações. Até que começamos a ouvir juntos gravações de outros violoncelistas. A música derrubou todas as barreiras. E, por meio dela, lembranças, memórias e afetos enfim surgiram, revelando uma pessoa bem-humorada, carinhosa e profundamente inteligente.
Não é acaso, portanto, que ele entendesse a música como diálogo. Primeiro, do intérprete consigo mesmo. Não havia para Meneses uma divisão entre técnica e expressão. Ideias a respeito de como interpretar uma obra estavam sujeitas à técnica do músico; e, da mesma forma, a técnica se alargava à medida em que a experiência trazia novas ideias e percepções a respeito do que se tocava.
Por conta disso, ele via o trabalho do músico como um constante desenvolvimento. Não gravou as suítes de Bach três vezes – nos anos 1990, no início dos anos 2000 e em 2023 – por vaidade ou pressões mercadológicas, mas porque entendia que o conceito de uma interpretação fechada, de referência, era menos importante do que a percepção do desenvolvimento de si mesmo como artista – e como ele possibilitava a chance de dizer novas coisas.
Outro diálogo se dava com seus colegas. Meneses refinou com músicos como o pianista Menahem Pressler algo que já intuía desde cedo: fazer música era conversar sobre o que se tocava. Mas essa conversa tinha suas regras. Dependia da capacidade de ouvir o outro e de ser claro o suficiente para ser ouvido. Nesses papos musicais, Meneses rejeitava com força tergiversações.
É por isso que seus registros com músicos como o próprio Pressler, Claudio Cruz, Ricardo Castro, Maria João Pires e Rosana Lanzelotte, entre muitos outros, revelam mundos em que a personalidade individual muito bem marcada se misturava à capacidade de se adaptar àqueles que tocavam ao seu lado. Não é exagero. Seu Brahms com Pires ou seu Villa-Lobos com Castro e Cruz estão entre as gravações mais importantes dos últimos vinte anos do mundo do violoncelo.
Naquela conversa com os estudantes, Meneses afirmou, divertindo-se, que não parava de brigar com o violoncelo. Arrancou risos e surpresa. Era difícil imaginá-lo com qualquer dificuldade que fosse. Mas ele as assumia, desafiava, e superava. E saía do outro lado um músico ainda mais completo e complexo. Ele nos deixa no auge, o que é tristeza e alento ao mesmo tempo. Se é que para interrupção tão violenta pode haver de fato algum consolo.
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