Quantas sinfonias, óperas e concertos cabem em 90 anos? Quantas partituras estudadas? Quantas horas de ensaio diante de orquestras? Na intensa vida de Isaac Karabtchevsky, é difícil precisar qualquer número desses. Um exercício mais certeiro, no entanto, é estimar a quantidade de público alcançado por sua arte.
Enquanto muitos maestros ficam felizes de encerrar a carreira tendo chegado às centenas de milhares de espectadores, o artista paulista faz parte de um grupo restrito cuja música, seguramente, já ultrapassou a marca dos milhões em espetáculos ao ar livre, na televisão e nas mais prestigiadas salas nacionais e internacionais.
Essa conta está prestes a ganhar um reforço. Na sexta-feira, 27, ele rege a Orquestra Petrobras Sinfônica em um concerto gratuito na praça da Cinelândia, na região central do Rio de Janeiro, em frente ao Theatro Municipal. É o exato dia de seu aniversário de 90 anos, dos quais 70 foram dedicados integralmente à música.
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Nascido em São Paulo, em 1934, Karabtchevsky herdou a inclinação artística da mãe, uma mezzo soprano ucraniana. O instrumento de partida foi o oboé, mas desde os 12 anos sentia o desejo de reger, aprendendo o ofício com o alemão Hans-Joachim Koellreutter.
Sua trajetória oscilou entre o Brasil e a Europa. Na Alemanha, se aperfeiçoou com Carl Ueter e Pierre Boulez. Também fez as vezes de regente titular da tradicional Orquestra Tonkünstler (1988-1994), em Viena; mergulhou no universo das óperas como diretor musical do Teatro La Fenice (1995-2001), em Veneza, e comandou a Orquestra Nacional do Vale do Loire (2004-2009), nas cidades francesas de Angers e Nantes.
Foi em seu país natal, porém, onde se tornou referência do que é ser maestro. Após dois anos como assistente, dirigiu a Orquestra Sinfônica Brasileira de 1969 a 1994 e a tornou protagonista de um forte processo de popularização da música clássica, realizando espetáculos que arrastaram multidões a praças e parques para ouvir de Beethoven a Barão Vermelho.
Em paralelo, estrelava na TV programas como A Grande Noite, na Tupi, e Concertos Internacionais, na Globo. Neles, explicava conceitos musicais e comentava repertórios.
No Brasil, esteve ainda à frente das orquestras sinfônicas municipais de São Paulo e de Porto Alegre até assumir seus dois principais compromissos atuais: a direção artística da Petrobras Sinfônica, com a qual está desde 2003, e da Sinfônica Heliópolis, fruto de um projeto social do Instituto Baccarelli, pela qual responde desde 2011. As atividades o fazem viver na ponte aérea entre Rio e São Paulo, com uma agenda lotada e sem sinais de arrefecimento.
Karabtchevsky conversou com o Estadão em meados de dezembro, pouco antes do concerto de encerramento da temporada anual do conjunto paulista, no Teatro B32. Com entusiasmo, falou de sua festa carioca, que tem apoio do Sesc RJ e do Theatro Municipal do Rio. Será uma noite permeada por obras como Bolero, de Ravel, além do brasileiro Heitor Villa-Lobos, compositor do qual se tornou garoto-propaganda em suas muitas andanças pelo mundo.
Outro assunto que o anima é a construção de um teatro na favela de Heliópolis, futura casa da orquestra com o nome do bairro, cujo concerto inicial será regido por ele - o prédio tem previsão de entrega para o primeiro semestre de 2025. Esses são apenas alguns dos planos mais imediatos do maestro. Não poderia ser diferente para quem “a música ordenou militância”, como o próprio gosta de dizer.
Sua mãe dizia que o Brasil era repleto de oportunidades. O senhor concorda?
Plenamente. Ao dirigir corais e orquestras brasileiros, no fundo agradeço ao povo dessa terra que tão bem a acolheu.
Junto à Orquestra Sinfônica Brasileira, o senhor desenvolveu uma série de projetos.
Eu já tinha estruturado a minha vocação teórica na Alemanha. Então cheguei ao Brasil com uma força hipnótica de querer fazer algo, e tinha a certeza de que iria fazer. Comecei como regente assistente de Eleazar de Carvalho e fui convidado a criar um projeto para os jovens. [À época, o maestro norte-americano] Leonard Bernstein fazia com a Filarmônica de Nova York grandes concertos populares no Central Park. Esse trabalho deu subsídios à formulação do nosso projeto. O Roberto Marinho [empresário que liderava as Organizações Globo] ouviu minha descrição do que eu julgava necessário e disse que estaria à frente. Assim nasceu o Projeto Aquarius. Chegamos a ter 300 mil pessoas assistindo, com interesse e devoção, aos concertos que fazíamos ao ar livre.
Esse projeto incluía repertórios da música popular, algo raro à época. Como o senhor lidava com as críticas que surgiram?
Algumas pessoas se sentiram ofendidas com uma música clássica integrada ao povo. Diziam que isso não fazia parte do nosso vocabulário. Mas do meu vocabulário fazia sim. Era um absurdo condicionar a música a um público limitado. Nós tínhamos necessidade de expandir esse círculo a proporções antes totalmente inauditas.
Nesse momento o senhor também estava na televisão. Acredita que seus programas ajudaram a impulsionar a música clássica no Brasil?
Esse território foi muito valioso, porque se conjugou diretamente com os concertos ao ar livre, apresentando facetas de uma mesma matéria em diferentes veículos. Foi algo simultâneo e que enriqueceu consideravelmente a cultura musical do brasileiro. Disso estou absolutamente convencido.
Quanto de um músico é intuição e quanto é preparação?
Elas caminham juntas. A preparação é mais do que fundamental, mas ela não pode estar desacompanhada da intuição, da possibilidade de gerir as frases musicais. Ao mesmo tempo, o aprofundamento da concepção das frases provém do trabalho árduo, diário, constante e permanente, até a morte. Não há outra solução para um músico.
O senhor se considera um embaixador de Villa-Lobos?
Sim. Finalizei [em 2018] a gravação das onze sinfonias dele, com a Osesp, que foram lançadas pela Naxos. A meu ver, esses álbuns são definitivos em relação à execução das sinfonias do maestro.
Qual é a principal diferença entre uma orquestra europeia e uma brasileira tocando Villa-Lobos?
Sinto que é o primeiro gesto. O sabor que um músico brasileiro tem de desfrutar a linguagem de um compositor pátrio é completamente diferente. É como um vienense tocar uma valsa de Strauss.
O senhor se divide entre Rio e São Paulo, com duas orquestras muito diferentes uma da outra. Que desafios cada uma traz?
Posso dizer que eu estou numa fase mágica da minha vida. A Petrobras Sinfônica é um grupo de músicos que se transformou em minha família. E, em São Paulo, a Sinfônica Heliópolis me proporciona a possibilidade de adentrar um novo território, na favela. Me orgulho muito e agradeço ao esforço gigantesco do Edilson Venturelli [maestro e diretor do Instituto Baccarelli, que gere a orquestra]. É um trabalho incansável.
O que o senhor espera desses jovens?
Espero que não passem pelas mesmas dificuldades que eu. A vida de um maestro é muito complicada. Exige tenacidade, devoção, fé em si mesmo, na sua capacidade, e exige um golpe de sorte para encontrar um ambiente que propicie o ensino da música e o desenvolvimento de novas carreiras musicais.
E o que o senhor aprende com eles?
Muito, muito! Ao ensinar, você aprende.
Com tantos anos de estrada, como o senhor lida com o estudo e o aprendizado?
Se Deus me der saúde e a mesma lucidez com a qual eu caminho diariamente, digo não querer nada mais do que a vontade de estudar. Sem ela, é melhor desistir e gozar de umas boas férias como aposentado. Mas “aposentadoria”, para mim, é um palavrão.
No início dos anos 2000, de volta da Europa, o senhor teve a possibilidade de seguir com uma vida mais tranquila, mas não conseguiu.
Eu jamais poderia descansar. A música me ordenou militância total, da manhã à noite, como um político a tem. A estrutura vital para alguém permanecer músico é continuar estudando, estudando e estudando sem parar.
Quais desafios estão postos para os próximos anos?
São tantos projetos que eu reservaria mais uma entrevista como essa só para falar sobre eles. Rezo diariamente para ter mais alguns aninhos de vida e poder colocá-los em prática. Já fiz muito, mas ainda há um tanto a fazer.
Serviço
- Concerto de 90 anos do maestro Isaac Karabtchevsky com a Orquestra Petrobras Sinfônica
- Quando: Dia 27/12, às 19h
- Onde: Praça da Cinelândia, no Rio
- Preço: Grátis
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