Isolados em suas fazendas, mansões, quartos e estúdios caseiros, artistas da geração mais clássica do rock não devem usar os dias de isolamento para anunciar suas retiradas de cena. Gente com mais de 70 anos, como Eric Clapton, Mick Jagger, Elton John, Paul McCartney, AC/DC, Roger Waters e Bruce Springsteen, reativaram suas carreiras e, mesmo aqueles que já haviam falado em aposentadoria antes da pandemia do Covid-19, surpreenderam seus fãs e colocaram datas em agendas das mais antecipadas do histórico do show bizz mundial. Alguns ainda colhem boas críticas do que fizeram nos últimos meses enquanto outros têm na agulha trabalhos inéditos para saírem até o final do ano.
Eric Clapton, 75 anos, era quem inspirava mais cuidados. Em 2017, ele anunciou em uma entrevista estar com um mal chamado neuropatia periférica, uma doença que afeta o sistema nervoso e a movimentação dos membros. “Ainda posso tocar, mas tem sido um trabalho duro. Estou ficando velho. Sento-me em um canto de nossa sala, pego uma guitarra e toco na parte da manhã. À tarde eu descanso.” No ano seguinte, a doença afetou sua audição mas, agora, quando a pandemia parecia enterrar as chances de vê-lo sobre um palco, ele anuncia três datas para se apresentar em sua segunda casa, em Londres, o Royal Albert Hall. Os shows serão em 14, 17 e 18 de maio.
Enquanto isso, sua gravadora anuncia que vai colocar nas plataformas, dia 20 de novembro, a nova edição do Eric Clapton’s Crossroads Guitar Festival, uma jam session estelar que ele dirige desde 1999. O álbum que chega agora foi gravado ao vivo em 2019, no Texas, quando Clapton recebeu no palco Peter Frampton, Jeff Beck, Bonnie Raitt, Sheryl Crow, Tedeschi Trucks Band, Buddy Guy, John Mayer, Robert Cray, Gary Clark Jr., Vince Gill e protagonizou, ao lado de Frampton, uma versão matadora de While My Guitar Gently Weeps, dos Beatles. O que saiu e pouco se comentou foi o relançamento em versão deluxe de Riding With the King, o álbum original de 2000, gravado com BB King e imediatamente ingresso entre seus melhores discos.
A Reprise Records lançou o álbum comemorativo de 20 anos em LP duplo, nas versões de vinil nas cores azul ou preto, de 180 gramas. A remasterização ficou com Chris Bellman, realizada no Bernie Grundman Mastering, em Los Angeles. O que ela traz de novo são duas faixas gravadas nas sessões dos dois guitarristas mas que não foram usadas no original: uma Rollin’ and Tumblin, de Muddy Waters, que Clapton havia tocado com o Cream no primeiro álbum da banda, Fresh Cream, de 1966, e um cover de Let Me Love You Baby, do baixista e prolífico bluesman, Willie Dixon.
Outro bravo inglês é Elton John, 73 anos completados ao lado do marido David Furnish no início da pandemia, a 23 de março. Sua Farewell Yellow Brick Road, a turnê da despedida, seria feita pelos Estados Unidos e pelo Canadá entre março e maio até os deuses o impedirem de dizer adeus. Corajosamente, e talvez fazendo o agendamento mais antecipado da história do rock, ele jura que os shows vão começar em New Orleans no dia 19 de janeiro de 2022. Não 2021, mas 2022. Não há notícias de que Sir Elton estaria com algum problema de saúde. Um episódio triste em fevereiro, na Nova Zelândia, o fez interromper um show antes da hora, depois de perder a voz. Elton estava com pneumonia, não conseguiu cantar e deixou o palco às lágrimas. Mas passou.
Quando os bisnetos de Bruce Springsteen perguntarem o que ele fez na pandemia de 2020, aqueles dias que os livros de história contarão terem sido dos piores para se estar vivo no planeta, ele poderá dizer que fez Letter to You. Um discaço, cheio de alma e com o rock and roll mais puro que sai metade de The Boss, o chefão, como o chamam, e metade de uma das mais espetaculares bandas do mundo, a sua E Street Band. Ele voltou a gravar com o grupo dos guitarristas Stevie Van Zandt e Nils Lofgren depois de seis anos, quando fizeram High Hopes. Letter to You foi feito nas urgências do novo normal, em cinco dias, com todos tocando ao mesmo tempo e sem refazer um take, para aproveitarem o calor de suas vontades. “Eu amo a natureza emotiva de Letter to You”, disse Bruce. “E amo o som da E Street Band tocando completamente ao vivo no estúdio, de uma forma que nunca fizemos antes, sem overdubs. Nós fizemos o álbum em apenas cinco dias, e acabou sendo uma das melhores experiências de gravação que eu já tive.”
A agenda de Bruce segue parada e quem já o viu no palco sabe o que significa estar em seus shows. Três horas ou mais de rock que perpassam, além dos álbuns que lança na ocasião, covers que a plateia pede na hora e canções antigas que nem sempre estão no repertório. Sobre o que virá depois da pandemia, ele diz: “Tudo o que posso dizer é que, quando essa experiência acabar, vou dar a festa mais louca que você já viu, E vocês, meus amigos, estão todos convidados.”
Aos 78 anos, Paul McCarney se foi para a fazenda da família, nos arredores de Londres. Cheio de tempo ocioso, acabou ficando muitos dias seguidos na sala de música para rever canções inacabadas e desengavetar ideias que começaram a ganhar forma. Criou linhas melódicas sobrepostas a linhas que já existiam e, quando percebeu, já tinha material para um álbum inteiro. Ele mesmo escreveu o seguinte em suas redes sociais: “Eu tinha algumas coisas nas quais trabalhei ao longo dos anos, que às vezes ficavam sem conclusão. Todo dia eu começava gravando com o instrumento com o qual eu escrevi a música e aí, gradualmente, fui adicionando camadas. Foi muito divertido. Foi sobre fazer música para você mesmo ao invés de fazer música que tem que cumprir um trabalho.”
Mas aquilo tudo se tornou trabalho e McCartney, isolado, lembrou dos dois discos que já fez tocando todos os instrumentos, em 1970 e em 1980, e começou a gravar McCartney III. Mais uma vez, ele toca todos os instrumentos e assina todas as letras, as músicas e os arranjos. O álbum está previsto para sair em 11 de dezembro. O repórter Stuart Stubbs, da revista Loud And Quiet, falou com Paul em outubro de 2020 e comparou o álbum de agora com o disco de 1970, feito em isolamento espiritual, logo depois da traumática separação dos Beatles. Haveria alguma semelhança? “Eu acho que é parecido. Tem a ver com liberdade e amor. Há uma grande variedade de sentimentos nisso, mas eu não planejei que tudo fosse como ‘é assim que me sinto neste momento’. Os velhos temas estão lá, de amor e otimismo. ‘Aproveite o dia’ – sou eu. Essa é a verdade.”
Matt Everitt, da BBC Radio, falou com o músico em outubro, e quis saber se a pandemia havia interferido de alguma forma em seu jeito de escrever. “Sim, acho que sim”, disse Paul. “Algumas das canções mais recentes, como esta chamada Seize The Day tem ecos da pandemia quando diz ‘quando os dias frios chegarem, gostaríamos de ter aproveitado o dia’. É sobre lembrando a mim mesmo e a qualquer pessoa que estiver ouvindo que o melhor pegar as coisas boas e, você sabe, tentar superar a pandemia”.
Mick Jagger fez 77 anos em julho, pleno isolamento, e andou em atrito com Paul no início da quarentena sobre a longevidade dos Stones versus a inexistência (física) dos Beatles. Quem começou foi Paul, em uma entrevista à BBC: “Observe a história. Os Beatles vão para os Estados Unidos, um ano depois os Stones também vão. Escrevemos o primeiro single deles, I Wanna Be Your Man. Entramos na psicodelia, eles também entraram. Nos vestimos como feiticeiros, e eles também.” Mas Mick não se calou, a parece ter definido a briga ainda no primeiro round, ao mandar essa: “Uma banda é inacreditavelmente sortuda ainda tocando em estádios e aí a outra banda não existe.”
Mick com Ron Wood, Charlie Watts em sua bateria imaginária e Keith Richards fizeram uma aparição comovente em abril, talvez com o que será um dia reconhecido como o hino dos tempos quarentenais, no festival online One World: Together at Home, cantando You Can’t Always Get What You Want. Paul também esteve lá, mas sua Lady Madonna, tocada delicadamente ao órgão de sua sala, não teve tanto impacto. Os Stones também lançaram Living In A Ghost Town. “A vida era tão bela e agora todos estão presos”, cantam em uma parte da canção sobre a cidade fantasma, a primeira inédita desde Doom And Gloom e One More Shot, as duas de 2012.
Ainda nos ingleses, e parece que eles têm mesmo uma água qualquer que os fazem indestrutíveis ao lado de seus espelhos norte-americanos. Roger Waters, 77 anos, não tem exatamente um álbum novo álbum na manga, mas, depois de liberar ao público sua apresentação de Another Brick in the Wall, o músico dispôs também uma versão de Time, feita no show que aconteceu em Amsterdã, em junho de 2018. E lançou um clipe comovente de Mother em estética pandêmica, com o vídeo em preto e branco dividido em telas nas quais os músicos entram aos poucos até tudo chegar a um grau explosivo e atingir o ponto das lágrimas. A estética pandêmica já se tornou uma linguagem visual.
Outro grupo usou os meses do isolamento social de 2020 para, enquanto só falavam em mortes, ressuscitar. Quando as notícias levavam a crer que os australianos do AC/DC estavam com seus dias contados, dizimados pela ausência de Malcolm Young, líder e compositor de quase tudo do grupo, morto em 2017 depois de agonizar em uma demência por três anos, eles vieram com uma pancada chamada Power Up.
Parecia maldição. Antes de Young partir, o baterista Phil Rudd foi preso por porte de drogas e tentativa de assassinato de seu secretário, uma denúncia que foi retirada, mas que lhe custou oito meses de prisão domiciliar. Logo depois, o baixista Cliff Williams desiludiu-se da vida e pediu aposentadoria. E então, os ouvidos do vocalista Brian Johnson jogaram a toalha depois de décadas suportando toneladas de decibéis e pararam de funcionar. A pandemia então, por incrível que poderia parecer, realinhou as órbitas da banda ao redor de Angus Young, o novo líder, e tudo começou a ser refeito. Rudd pagou sua dívida com a Justiça; Stevie Young, filho de Malcom, veio reforçar o time juntando-se a Angus no paredão de guitarra; Rudd saiu da depressão; e Brian recebeu uma espécie de prótese de tímpano espetacular, que lhe devolveu a sensibilidade para ouvir cada solo de Angus. Power Up ignora a quarentena e as baladas para fazer o som de um mundo que, ao menos para o AC/DC, nunca deixou de existir.
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