O território dos países que formavam a antiga União Soviética está abalado e ainda mais cindido desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022. Com os dois países em guerra, os vizinhos se dividem entre o apoio a um dos lados, como a lealdade de Belarus à nação de Putin, e um árduo equilibrismo diplomático, como o do Cazaquistão.
Nos últimos dias, no entanto, uma coisa une cidadãos destes países: eles estão dançando, ouvindo e adorando uma música brasileira.
No fim do último mês, a faixa Automotivo Bibi Fogosa, da curitibana Bibi Babydoll e do carioca DJ Brunim XM, alcançou no topo das paradas do Spotify da Ucrânia por dias seguidos. Mas não só: ela já chegou ao top 3 em Belarus e no Cazaquistão.
O Spotify não funciona na Rússia. Mas há um sinal claro de interesse pela música no país: no Shazam, aplicativo em que ouvintes buscam o nome de uma faixa a partir do áudio, Automotivo Bibi Fogosa já é a faixa mais procurada entre os russos. No Yandex, serviço de streaming popular no país de Putin, Bibi já acumula 300 mil ouvintes mensais. No TikTok, a música é usada em vídeos exaltando o líder russo.
Em outros países da região, como Letônia e Lituânia, a faixa segue crescendo sem sinais de desacelerar. E se a música é hit inquestionável no leste europeu, outros países não ficam tão atrás - Automotivo Bibi Fogosa também está entre as 100 músicas mais ouvidas em países como a Arábia Saudita e o Peru.
O caminho surreal deste sucesso começa na cena de funk de São Paulo, mas passa por uma misteriosa dançarina russa, um influenciador cazaque e até soldados da guerra ouvindo Brazilian Phonk, batida brasileira que invade a Europa.
Mas quem é Bibi Babydoll?
Natural de Curitiba, no Paraná, Beatriz Alcade Santos tem 24 anos e atende pelo nome artístico Bibi Babydoll. A cantora, que começou como performer, faz um show que envolve fogo no palco – daí a “Bibi Fogosa” – e lançou sua primeira música em 2021, já interessada em trabalhar com música eletrônica. Em seu estilo visual, é possível perceber influências de anime e cosplay, temas recorrentes até em alguns vídeos do leste europeu que utilizam sua música.
Bibi se mudou para São Paulo ainda em 2021, em busca de contatos para a carreira. Quando o DJ paulista Mu540 apresentou Bibi ao DJ Brunim XM, o som encontrou sua voz e vice-versa. O produtor carioca, que assina a música com a cantora, já tinha a base da música construída mesmo antes de conhecê-la: era um esqueleto com um sample da música de rock Can You Feel My Heart, do Bring Me The Horizon (como de costume no Brasil, sem autorização dos artistas estrangeiros).
Bibi entrou com seus vocais e a faixa, em poucos meses, se tornou hit. Aqui e na Ucrânia, no Cazaquistão, em Belarus, na Rússia...
O sucesso na Europa e na Ásia não foi proposital, nem esperado, por nenhum dos dois. Bibi conta que já era influenciada por música eletrônica europeia – russa, inclusive –, mas não fez uma música pensada para esses países. Um sucesso desses era inimaginável. “Eu já fiquei feliz quando a música bateu 300 mil views, brincou Bibi. “Não esperava nunca que virasse internacional”.
Por que o som pegou?
Conhecida como funk automotivo, a sonoridade de Automotivo Bibi Fogosa tem batidas mais retas e pesadas, com fortes graves, tocados em sistemas de som de carros. Esse estilo também é próximo do rótulo Brazilian Phonk, que mistura o funk com a música eletrônica de pista, e se espalha pelo mundo, em especial no leste europeu.
Nos mesmos países que consomem Automotivo Bibi Fogosa, outra faixa brasileira no topo dos virais é Beat Tan Tan Automotivo, do WZ Beat, que também é um tipo de funk desse estilo – e dialoga com o Brazilian Phonk.
Phonk até na guerra
Em matéria recente, o Estadão explicou a origem do Brazilian Phonk, que ganhou popularidade no TikTok. Esse som tem se popularizado tanto que é possível encontrar, inclusive, vídeos de soldados da guerra entre Rússia e Ucrânia com a sonoridade.
Para a cantora e o produtor, foi essa familiaridade que rendeu tantos plays. “Se você procura as músicas mais ouvidas lá, elas têm um som similar [com a minha]”, afirma Bibi. Ela não considera que seu estilo seja phonk, mas não nega totalmente a associação: “Estamos em uma das maiores playlists de phonk do Spotify”, reforça.
A dúvida não é só em relação a essa faixa: não é clara qual é a fronteira entre o funk e o tal Brazilian Phonk. Alguns acham que são estilos diferentes, enquanto outros defendem o novo estilo é apenas um rótulo chique, do tipo exportação, para o velho batidão brasileiro.
Brunim aprecia o sucesso internacional, mas ressalta que o som que ele faz é genuinamente daqui. “Viralizou por ter um grave mais distorcido e melodia mais pegajosa, pegou igual chiclete. Parece muito phonk, mas eu não faço phonk. Faço funk automotivo brasileiro”.
Como nasce um viral mundial?
Nem Bibi, nem Brunim sabem dizer com precisão quando tudo mudou. Há alguns capítulos: para o DJ, um dos principais motivadores da viralização no Brasil foi o compartilhamento feito por perfis influentes no mundo do funk, como Diego Andrade (@bomdiafunk) e @brunoplaybp.
A partir disso, como são as coisas na internet, as fronteiras foram desaparecendo. De repente, a música atravessou oceanos – e Brunim achou um vídeo de uma menina, que ele acredita ser russa, dançando a faixa.
“Provavelmente foi ela que começou a bombar [a música] no app”, contou Brunim. “Aí eu mostrei pra Bibi, falei ‘Tem uma menina da Rússia dançando, caramba”. O perfil em questão, segundo o produtor, foi banido da plataforma.
Tinha um cazaque no meio do caminho
Outro ponto que consolidou o viral foi a coreografia inventada por um usuário chamado Arystan, do Cazaquistão. “Esse cara que fez a dancinha que viralizou, que até o João Guilherme fez”, contou o DJ. Os passos, simples e fáceis de executar, rapidamente se espalharam entre o leste europeu e a Ásia.
Apesar de estar em um país em guerra, os ucranianos adotaram a música para usos divertidos, como esses vídeos de dancinhas ou associados a anime e cosplay. Quando perguntada sobre ter uma música sua viralizando em lugares tão distantes, Bibi ainda parece em choque. “Não sei se caiu a ficha”, diz a cantora. “Tento ser pé no chão, não me deslumbrar com as coisas, mas é impressionante.”
“Não consigo imaginar a maioria das pessoas lá ouvindo a minha música”, reflete. “Eu teria que ir lá ver isso”.
Letra chocante, ouvintes desavisados
Em muitos casos, é possível que a música tenha sido consumida sem que os usuários saibam seu significado. A letra, que faz alusão a sexo, passa despercebida em diversos vídeos – em alguns, há crianças dançando. Bibi chegou até a fazer uma versão “soft”, censurada, para que brasileiros pudessem ouvir sem medo; no entanto, lá fora, é a “proibidona” que faz sucesso.
Há quem reconheça esse estranhamento e até procure saber o significado, como fez um usuário do TikTok. “Poucas pessoas sabem português, então ouça e divirta-se”, escreveu um ucraniano. No YouTube, um dos comentaristas traduziu a letra da música para russo - e um conterrâneo escreveu nos comentários: “Horror”.
Com o viral, Bibi já recebeu mensagens de fãs de vários países e contatos relacionados à distribuição da música – ela revela que ficou difícil de acompanhar. No entanto, ela não recebeu convite para tocar lá ainda e não tem certeza do quanto é reconhecida lá fora. “Não sei se eles associam a voz à minha imagem”, conta.
O sucesso internacional não desacelerou Bibi ou Brunim: é um impulso para o voo, não o destino final. Enquanto o produtor já lançou diversas novas músicas, a cantora se prepara para uma nova fase. “Quero ter um corpo de carreira, não quero ser artista de um hit só, nem só conhecida lá. Quero ser conhecida aqui também, com o meu jeitinho”, conta. Para eles, esse é só o começo.
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