Opinião | Billie Eilish transforma autodescoberta sexual e afetiva em álbum agridoce, caótico e repetitivo

Em terceiro álbum, cantora se livra de outras amarras e se mostra disposta a manter-se na vanguarda da música pop, mesmo que com um coração partido em pedacinhos

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Foto do author Pedro Antunes
Atualização:

Billie Eilish se apresenta para multidões desde os 18 anos. Antes disso, o palco era seu quarto, dividido com o irmão e produtor Finneas, enquanto burilavam canções que atormentavam os sonhos da jovem adolescente norte-americana, em meio às inseguranças sobre quem se quer ser quando crescer, pressões estéticas e da vida social da geração Z, fluída, líquida, escorrida até.

A experiência de sair da escuridão do quarto e ser jogada sob o maior dos holofotes do pop em anos a fórceps foi, como de se esperar, violenta. Billie sentiu. Se alguém de 40 anos sentiria, imagine uma pessoa no fim da adolescência, a aguentar a pressão da fama.

Billie Eilish se liberta de novas amarras em novo álbum, ‘Hit Me Hard and Soft’ Foto: DIvulgação / Universal Music

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Este é o primeiro sentimento do qual ela, aos 22 anos, começa a se libertar em Hit Me Hard and Soft, o terceiro álbum de uma carreira flamejante, com uma coleção de prêmios que inclui 9 gramofones do Grammy e duas estatuetas do Oscar (nada mal, não é?).

Embora fosse uma artista a ser descoberta antes de 2017, com um sucesso (a triste Ocean Eyes), o disco que mudou tudo, a estreia com We All Fall Asleep, Where Do We Go?, transformou Billie em ícone fashion e pop.

A vanguarda da música dançante e da moda, de súbito, se aglutinou na jovem de pele alva, olhos claros, cabelos com descoloridos e tingidos de cores radioativas, daquela forma parasitária, como uma sanguessuga vampiresca.

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Billie sobreviveu ao caos. Abraçou-o enquanto circulava o mundo com um disco soturno, que dava vida aos seus maiores pesadelos, com batidas graves densas, vagarosas e retumbantes, com detalhes estéticos que pareciam ter saído da dos pesadelos de Tim Burton e o mundo de Beetlejuice, do filme Os Fantasmas Se Divertem.

No segundo álbum, Billie se esforçou tanto para dizer que estava ok que ficava evidente o contrário: ela ainda não estava. Quem estaria? Aos 20 anos, fez o que um pós-jovem faz, quis chocar, festejar. Mudou tudo: deixou a escuridão e apelou para um dourado cujo brilho deveria tentar ignorar as questões mais íntimas. Saíram as batidas eletrônicas, entraram as baladas bossanovianas. Intimista, sim, com dedos em algumas feridas bem-sensíveis a respeito da sua jornada no mercado da música e de relacionamentos abusivos.

A emancipação de Billie Eilish

Portanto, é de se esperar que Hit Me Hard and Soft seja a emancipação de Billie Eilish. Aqui, ela e Finneas estão soltos para experimentar, enquanto Billie se sente, corajosa o bastante para esmiuçar seu coração (e seus desejos mais íntimos).

Skinny, a primeira música do álbum, parece cria a ponte entre o segundo e o terceiro álbum, com uma guitarra dedilhada e a voz etérea de Billie a sobrevoar. “As pessoas dizem que eu pareço feliz porque emagreci”, diz um trecho da letra conectado diretamente com a fase anterior, do álbum cujo título era justamente, em tradução livre, “mais feliz do que nunca”. Nas imagens da época, além do dourado, a artista colocava mais da sua pele em evidência.

Nesta mesma música, Billie Eilish deixa para trás a temática que a atormentava (do pássaro na gaiola) para se sentir livre, de vez, para tratar da sua sexualidade. Em outro verso, a artista se declara: “Eu acho que ela está linda”.

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Mais dessa temática segue, quando a baladinha de guitarra é trocada por uma roupagem dançante, como um ska robótico. Em Lunch, que é a palavra em inglês para almoço, Billie explica que não é está sentindo fome, e, sim, tesão: “poderia almoçar aquela garota”, versa Billie. Uma informação interessante é que a mãe de Billie Eilish teria ficado em silêncio por longos minutos após ouvir esta música, especificamente.

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Deixando os pudores para trás, Billie Eilish havia revelado, em entrevistas, o quanto estava a vontade com seus gostos e sua própria sexualidade. Hit Me Hard and Soft é também um título sexual: bata-me forte e leve ou devagar, neste movimento de masoquismo afetivo desenvolvido ao longo de cada uma das outras faixas. Um morde e assopra literal, a aquecer e esfria as temperaturas, com razoável domínio.

Billie se descobre amando, enfim. E dói, como sabemos. Chihiro, iniciada como um lo-fi japonês, desenvolve-se em um refrão de falsetes e batidas eletrônicas. Billie canta a solidão. Como um diário, ela verborragicamente narra um desamor. “Abra esta porta?”, pede. E não abriu.

“Eu quero que você fique”, insiste mais uma vez, agora em Birds of a Feather, uma música das mais coloridas do álbum, com inspirações oitentistas, iniciada como uma balada soft rock que poderia emplacar na programação de rádios adultas contemporâneas, ao lado de Fleetwood Mac, Eagles e Paul Simon.

Liberdade pode ser sentida

Dá para sentir a liberdade nas letras de Billie e no irmão, com uma produção cada vez mais ousada e menos caricata de si, mesmo. Hit Me Hard and Soft foge das armadilhas. A voz de Billie, imagino, poderia subir um ponto, perder o ar nebuloso com egos e fades, o que pode causar algum estranhamento para os millennials que, diferentemente da geração Z de Billie Eilish, têm dificuldade de perceber as nuances na produção e tentem a achar o álbum repetitivo.

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Eis o grande dilema do terceiro disco de Billie. A Gen Z o aclamou, os millennials se aborreceram (calma, há exceções para os dois lados), enquanto os geração X fingiram que gostaram só para se sentir enturmados com a juventude tiktoker.

A verdade Hit Me Hard and Soft tem brilhos na primeira audição, como na citada Birds of a Feather, na balada desesperada (e fantástica) The Greatest e no volume propositalmente alto de L’Amour De Ma Vie, mas também pode soar mais horizontal em uma audição corrida do que a montanha-russa de sentimentos cantados por Billie pode sugerir. Nisso, o primeiro álbum cheio de Billie era mais desafiador, estranho e punk, pelo ineditismo da estética dos irmãos.

A impressão é que Billie e Finneas criam uma Alpha FM para a geração Z, com músicas românticas de amor, dor de cotovelo, solidão e desespero, em alusão à estação de rádio dedicada às músicas românticas madrugadas adentro. Como se sintonizassem diferentes artistas e canalizassem sentimentos distintas sonoridades.

The Greatest, de tão boa merece um parágrafo próprio, é o ápice do trabalho, a sexta faixa, de 11. Nela, Billie está em pedaços por um desajuste do coração. Canta com intensidade inédita, como se precisasse fisicamente arrancar aquela sombra do coração a partir das cordas vocais.

Cara, eu sou a maior? / Meus parabéns / Todo o meu amor e paciência / Toda a minha admiração / Todas as vezes que esperei / Você me querer nua / Fiz tudo parecer indolor / Cara, eu sou a maior?

Letra de The Greatest, de Billie Eilish

Depois desta faixa, o disco perde o foco e os irmãos brincam mais, como se esperar de um lado b. The Dinner é um carrossel sonoro mais sombrio (como uma sobra do primeiro álbum), seguida de Bittersuite, cujos ruídos de superpop dos primeiro segundos são substituídos por ecos e minimalismo. “Preciso tomar cuidado”, canta, “porque eu não posso me apaixonar por você, por mais que eu queria”.

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Liberta, Billie chega ao fim do seu terceiro álbum mais leve do que entrou. A arte da capa, ela afundada na água, dá a sensação de um mergulho. Debaixo de água, o peso diminui.

Billie Eilish está pronta para enfrentar o mundo mais uma vez. Agora, muito mais livre, fora de algumas gaiolas - não garanto que se livrou de todas, mas algumas, sim.

Opinião por Pedro Antunes

Subeditor de Cultura e E+. Crítico de música, cinema e TV.

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