A primeira biografia de Nelson Freire (1944-2021) foi publicada na França pelo jornalista e escritor Olivier Bellamy em novembro de 2022, um ano após a morte do pianista aos 77 anos. Nesta semana, Nelson Freire – O Segredo do Piano chega ao Brasil, em lançamento da editora DBA, e já causa incômodo no meio musical por revelar, sobretudo, detalhes envolvendo sua morte.
Leia também
Freire foi o maior pianista brasileiro do último meio século e um dos cinco grandes de uma geração de iluminados gênios do piano, integrada por Martha Argerich, Alfred Brendel, Radu Lupu e Andras Schiff. Há muito a se refletir sobre sua carreira, mas o livro está mais preocupado em trazer elementos a respeito de sua vida pessoal. Bellamy, autor ainda de livros como Dicionário Amoroso do Piano, é biógrafo de Martha Argerich, grande amiga de Freire, com quem ele também conviveu.
O enfoque de Bellamy, no entanto, provocou incômodo no círculo mais próximo do pianista. Amigos e colegas ouvidos pelo Estadão, que preferem não ser identificados, expressaram revolta com o texto de Bellamy. Um aspecto em especial tem sido alvo de críticas: o relato dos últimos anos de vida de Freire e da noite de sua morte, na madrugada de 1º. de novembro de 2021, em sua casa no Joá, no Rio.
Os últimos anos de Nelson Freire não foram fáceis, marcados por dois acidentes que lhe provocaram o maior sofrimento que um pianista pode enfrentar: o de não conseguir mais tocar no mesmo nível que o consagrou mundialmente.
Primeiro, em 29 de outubro de 2019, a queda em caminhada no calçadão de pedras da Barra da Tijuca afetou o ombro e o cotovelo direitos. Foi preciso implantar uma prótese. A depressão deu lugar ao desespero quando escorregou no chão molhado da piscina, e fraturou a mão esquerda. “Retorno ao hospital. Mutilado dos dois lados (...) Nelson entra em desespero profundo”, escreve Bellamy.
Nas páginas finais, o autor segue, então, para o relato de suas últimas horas. “Na noite de 31 de outubro para 1º de novembro, Nelson envia um último SMS a Martha [Argerich]. Ele está com muito medo. Pouco antes da meia-noite, sob uma chuva forte, sai de casa de pés descalços. Deixa a porta aberta. A porta que já não fica fechada a chave. Ele caminha pelo terraço, sobe num banco, Deus sabe como, e mergulha na escuridão para se elevar aos céus sob o olhar da misteriosa Pedra da Gávea.”
Nelson Freire recusou-se a continuar vivendo? Sofreu um acidente? Bellamy não afirma com todas as letras. “Como ele morreu? Deus sabe. Para nós, pobres mortais, só os fatos têm o valor da verdade”, escreve em seguida, em uma narrativa que opta por ser vaga e dúbia em um aspecto profundamente delicado da história de seu biografado.
Mas a pergunta certa talvez seja por que ele não teve forças para se reinventar. Fragilizado, nos meses finais perguntava a todos que o visitavam se alguma escola de piano iria querê-lo como professor. Perguntou isso a Martha Argerich e a Myrian Dauelsberg, duas pessoas que estavam em sua casa na última semana de vida.
Seu temperamento o impediu de se reinventar
Nelson nunca foi de teorizar sobre música, e de grandes falações. Mas era a personificação do pianista tal como Charles Rosen, dublê de pianista e musicólogo, definiu. A música, diz, é uma maneira de instruir a alma e torná-la mais sensível, mas só é útil quando também proporciona prazer. Um prazer que se manifesta em todos os que a abordam como uma necessidade imperiosa, uma necessidade tanto do corpo quanto do espírito. Conclusão certeira: “A música sempre foi escrita antes de tudo para dar mais prazer aos executantes do que ao público”.
Esta é a melhor definição da arte de Nelson. Ele se sentia no céu conversando, tocando, ensaiando com outros pianistas, sobretudo com Martha Argerich. Rosen completa: “De fato, quando conversam entre si, na maior parte do tempo os músicos falam de prazer. Mostram uns aos outros passagens onde as qualidades harmônicas ou melódicas têm um interesse particular, onde se percebem vozes interiores imperceptíveis à audição. E quando toca uma de suas obras preferidas, o músico tende a valorizar as passagens que lhe dão mais prazer”. Mas, adverte Rosen, “essas passagens ganham mais se são interpretadas sem ostentação, com discrição e até um certo pudor”.
Não é que não pudesse, ele renunciou à possibilidade de se reinventar. Essa é uma observação que muitas pessoas próximas faziam, e que também está no livro. Sua relação com a música era através do piano, e só assim. Há um trecho na biografia em que Bellamy conta sobre uma vista de Martha em sua última semana de vida: “Assim que ela entra no quarto do amigo, Nelson declara de supetão: ‘Estou sofrendo fisicamente, psicologicamente, emocionalmente e espiritualmente’. Ele diz tudo, não finge estar bem (...) ‘Você ainda me ama, mesmo nestas condições?’”. Na sequência, o autor conclui: “Como se ele não valesse nada sem seu instrumento”.
Seu desejo era recuperar as mãos intactas para fazer música. Outros pianistas famosos conviveram com obstáculos intransponíveis como este e se reinventaram. O austríaco Paul Wittgenstein (1887-1961) perdeu o braço direito lutando na Primeira Guerra Mundial. Reinventou-se encomendando obras para compositores famosos só para a mão esquerda (como Ravel, que escreveu um belo concerto).
O brasileiro João Carlos Martins também teve problemas sérios na mão direita, que o impediram de prosseguir uma carreira formidável como intérprete de Bach. Reinventou-se passando a reger, montou sua própria orquestra, usa uma luva especial na mão direita. Aos 83 anos, mantém o entusiasmo da juventude, porque se alimenta da música, numa troca vital e virtuosa.
Outro grande pianista, o norte-americano Leon Fleisher (1928-2020), teve distonia focal na mão direita. Mas continuou fazendo música: encomendou obras a compositores contemporâneos para a mão esquerda, tocou o repertório de Wittgenstein, e além disso firmou-se como um dos grandes professores de piano.
A arte de Nelson, além da vida
Bellamy teria feito melhor empreitada se tivesse tentado explicar as razões que fazem de Nelson um dos grandes pianistas do nosso tempo. Procurei, mas não encontrei praticamente nada que acrescentasse algo em relação ao segredo de Nelson como pianista.
Porque, afinal, o que interessa num grande artista não é o que ele faz ou deixa de fazer quando não está tocando, gravando, ensaiando. Porque ser pianista é tarefa duríssima. Estudo diário, viagens solitárias e longas. O autor parece mais inclinado a repetir fofocas, escarafunchar a vida íntima de seu objeto de estudo.
Este tipo de informação vale a pena quando clareia para o espectador ou ouvinte a real importância do biografado. Bellamy acerta, por exemplo, neste caso: “Depois do concerto, a conversa se anima. O maestro [Valery Gergiev] quer que eles voltem a tocar juntos num festival de São Petersburgo, algumas semanas depois. (...) Nelson Freire faz sua estreia na Rússia, na capital imperial, com o Concerto n. 2 de Rachmaninoff”. Um brasileiro tocar o segundo de Rachmaninoff em Sâo Petersburgo regido por Gergiev é tão estratosférico quanto gravar os dois concertos de Brahms para a Decca com a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, regida por Riccardo Chailly em 2006. Esta orquestra estreou o concerto em meados do século 19 com o próprio Brahms como solista.
São só duas das incríveis façanhas artísticas dele ao longo de uma carreira fabulosa. E elas são centenas, que se repetiram por toda a sua vida.
A música de Nelson Freire
Em setembro passado, às vésperas de se completarem três anos de sua morte, o pianista venezuelano-argentino Sergio Tiempo, “cria” da “família” Martha Argherich-Nelson, lançou CD intitulado Hommage pelo selo Avanti. Deveria chamar-se “álbum de família”. É um emocionado tributo a seu “berço” artístico. Tiempo, hoje com 52 anos, costuma chamar Martha de tia e Nelson de tio. Além deles, Tiempo toca com o violoncelista Mischa Maisky e sua mulher e pianista Karin.
As duas peças a quatro mãos de Sergio com Nelson são as únicas latino-americanas. A brasileiríssima e suingada Congada, de Francisco Mignone. É a dança famosa da ópera O Contratador de Diamantes que em setembro de 1924 pôs dezenas de negros pisando e dançando pela primeira vez no palco do Teatro Municipal de São Paulo, para escândalo da distinta plateia branca. E o dolente Bailecito, peça igualmente famosa do argentino Carlos Guastavino (1912-2000).
Ouvir Nelson representa um sentimento misto de emoção e prazer. E mesmo que sejam 8 minutos de música, ouvi-los pela primeira vez nos faz comungar com o nosso maior pianista a dupla sensação que ele chegou a confessar - a mesma sensação de emoção e prazer que cada um de nós sente ao ouvi-lo tocar ele também experimentava.
Playlist Nelson Freire
1. Congada, de Francisco Mignone, versão para piano quatro mãos com Sergio Tiempo e Nelson Freire
2. Bailecito, de Carlos Guastavino, com Sergio Tiempo e Nelson Freire
3. Brahms: Concerto no. 2. Op. 83 mov. 2 Allegro Appassionato 8′39
4. Debussy: Prelúdios, livro 1, no. 10: La Cathédrale engloutie 7′03
5. Valsa da Dor, Villa-Lobos: 4′12
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.