Vitor Nuzzi, um jornalista de 50 anos, acaba de lançar a biografia não autorizada de Geraldo Vandré, o homem mais recluso da música brasileira. Seu ato faz história em duas frentes. Ao mesmo tempo em que narra com fôlego e apuração incansável uma vida repleta de mitos e que permanecia nas impressões de calabouço da ditadura, faz o maior desafio à lei vigente, que permite a retirada dos livros das lojas com uma simples torcida de nariz do biografado. Seu livro Uma Canção Interrompida é como Vandré, independente e livre de autorizações. Como nenhuma das seis editoras procuradas quis lançá-la sem a ciência do compositor, ele mesmo fez a revisão, mandou para a gráfica e, agora faz a distribuição, uma a uma, pelo correio. São, por enquanto, apenas 100 exemplares que, segundo o autor, não são vendidos.
Nuzzi procurou Vandré para colher depoimentos sobre sua história. Enviou oito cartas e não teve resposta de nenhuma. Na única ligação que Vandré atendeu, foi hostilizado: “Não tenho interesse nas coisas que você está fazendo”. Na tarde de ontem, Geraldo Vandré falou com a reportagem do Estado. “Acho isso uma exploração”, afirmou. Depois de ser informado de que os livros não estavam sendo vendidos, reiterou: “Mesmo assim, é uma exploração. Uma exploração de personalidade”.
Quase oito anos de pesquisa, cerca de 100 entrevistados, viagens para as cidades pelas quais seu biografado passou e três leões a abater. Vitor Nuzzi e seu bloco de anotações enfrentaram o medo das editoras diante da maldição da não-autorização, o receio de possíveis entrevistados amigos de Vandré que se fechavam ao saber que ele não gostava da ideia do livro e a imprevisibilidade de seu próprio biografado. Acreditou em sua pesquisa e mirou as primeiras luzes para a vida de um dos compositores mais intrigantes do País.
Sua obsessão pela história de Geraldo Vandré começa com uma constatação: de todos os compositores exilados, Vandré foi o único que não voltou. Seu corpo, sim - um regresso cheio de teatro protagonizado pelos militares que contaram com o apoio decisivo da TV Globo, como o livro narra em detalhes - mas sua carreira, jamais. E é aí, mais que por sua valorosa obra, que começa a surgir o mito.
Vandré assombra. Quatro músicos importantes se recusaram a dar depoimentos, segundo o autor, ao saberem que não havia autorização prévia: Renato Teixeira, Gilberto Gil (o pedido parou na assessoria de imprensa), Heraldo do Monte e Airton Moreira (ambos ex-integrantes do Quarteto Novo). Nuzzi, assim, aumentou a carga de sua apuração. Em Nazaré da Mata, interior de Pernambuco, conheceu o colégio de padres que teve Vandré como aluno. Em Juiz de Fora, Minas Gerais, em outra instituição católica de ensino, teve acesso às notas do futuro compositor. Boas notas, sobretudo em História e Matemática.
O Vandré de Nuzzi vai além do homem perseguido. Antes de ter os pés amarrados à imagem de louco torturado pela ditadura, começou a carreira fazendo bossa nova com Carlos Lyra, pesquisando a música dos sertões do País, vasculhando a obra de Guimarães Rosa e se tornando um defensor das raízes. Uma defesa tão veemente que o levaria ao embate com tropicalistas e à sua resistência em aceitar a guitarra elétrica na MPB.
A história ganha outro rumo a partir do dia 26 de junho de 1968, quando o povo sai às ruas no Rio de Janeiro para protestar contra o regime. Vandré observa a Passeata dos Cem Mil com um hino em mente. “Caminhando e cantando e seguindo a canção / Somos todos iguais / Braços dados ou não / Nas escolas, nas ruas, campos, construções / Caminhando e cantando e seguindo a canção”.
Pra Não Dizer que Não Falei das Flores não foi censurada em um primeiro momento. “Pode mesmo ter sido uma cochilada do regime”, diz Nuzzi. Saiu em compacto e entrou como uma das fortes concorrentes no Festival Internacional da TV Globo de 1968. Forte a ponto de disputar a grande final com Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim.
Walter Clark, da Globo, narrou em sua autobiografia que recebeu do alto comando do 1.º Exército a ligação decisiva para o desfecho daquela noite. “Essa música não deve ganhar o festival”, foi avisado. Quando veio o anúncio de que Sabiá era a vencedora, Tom Jobim ouviu de um Maracanãzinho lotado a maior vaia de sua vida. “Uma vaia que não era para o Tom, mas para o júri. Não era a vaia da vitória de Sabiá, mas da derrota de Vandré”, diz o pesquisador.
Quando a censura acordou, a música de Vandré já havia tomado as ruas. “O festival deu visibilidade para a canção e os militares se sentiram injustiçados por algumas partes.” Com o nome na lista dos procurados, Vandré tramou a fuga e partiu. Saiu da Alameda Barros, em São Paulo, onde vivia, seguiu para a casa de praia de uma namorada e chegou à moradia de Dona Aracy Guimarães Rosa, viúva de Guimarães Rosa. A casa era muito próxima ao Forte de Copacabana. Eles podiam observar os militares se movimentando da janela. Quando o cerco se fechou, amigos arquitetaram a fuga do Brasil. Vandré seguiu de carro até o Rio Grande do Sul e, de lá, entrou no Uruguai. Depois foi para o Chile, em 1969, onde se casou com Bélgica Villa Lobos, e seguiu para a França em 1970. Voltou para o Chile em 1972 e, no mesmo ano, participou de um festival no Peru.
No dia 18 de julho de 1973, o Jornal do Brasil informou em uma nota que tinha como título: “Vandré volta e é preso”. Assim dizia: “O cantor e compositor Geraldo Vandré foi preso, ontem, no aeroporto do Galeão, ao desembarcar de um avião procedente da Europa. O artista foi levado para uma unidade militar, onde se encontra incomunicável...”
A notícia foi abafada e, um mês depois, a Globo fez imagens no Aeroporto de Brasília que forjavam a chegada de Vandré ao Brasil naquele dia. Nuzzi entrevistou Evilásio Carneiro, o cinegrafista da matéria. “Levaram ele para uma sala e, quando chegou lá, o homem a ser entrevistado era o Vandré”, diz Nuzzi. Os próprios agentes do regime eram quem faziam as perguntas e indicavam o que Vandré deveria responder. “Foi a condição para ele permanecer no Brasil, uma retratação”, diz o biógrafo.
Nuzzi tem indícios fortes para acreditar que Vandré nunca foi torturado. “É uma lenda. A violência que ele sofreu foi psicológica, de um homem muito apegado a seu País que ficou exilado por tanto tempo.”
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