Há algo de muito sério acontecendo sobre os pouco mais de 100 mil quilômetros quadrados da Coreia do Sul. Empresários do ramo musical descobriram como armar artefatos explosivos de alcance muito mais longevo do que as ameaças que, vez ou outra, sofrem dos vizinhos do Norte. A receita parece fácil, só parece, desde que a primeira experiência em laboratório deu ao mundo o grupo BTS. Mas ninguém poderia esperar que logo depois surgiria a versão feminina do mesmo torpedo – e que ela poderia ir ainda mais longe.
O quarteto Blackpink não pode mais ser ignorado nem por quem diz odiar suas canções. Mais uma vez, os números falam por si: a atual turnê mundial das meninas, Born Pink World Tour, plataforma de lançamento do álbum Born Pink, de 2022, fez com que elas se tornassem únicas por duas vezes seguidas. Um show que fizeram no México, em abril, se tornou a maior bilheteria que um artista já ganhou na história com apenas uma apresentação. US$ 9,989 milhões. Ou seja, pouco mais de R$ 50 milhões em apenas uma noite. Nem U2, nem Rolling Stones e nem a turnê final da vida de Elton John (a que mais arrecadou na história até hoje) chegou a números parecidos em uma noite. Até aqui, Born Pink World Tour já rendeu mais de US$ 163 milhões – cerca de 817 bilhões de reais.
A história sobre o processo de treinamento para integrar essas investidas certeiras dos sul coreanos da empresa YG Entertainment já é conhecida. Eles criaram um roteiro extremamente funcional e estratégico para chegar a seus resultados, obtendo um índice de acerto descomunal. Desde a realização de testes cirúrgicos para identificar as pré-adolescentes que fariam parte do grupo até as rigorosas cláusulas do contrato, prevendo que, uma vez contratadas, elas não dessem um passo sem autorização de seus superiores, seus projetos potencializam em mil a produção laboratorial de sucessos realizada em outros mercados agressivos como o brasileiro e o norte-americano.
Algumas diferenças que fazem dos sul-coreanos mais vitoriosos do que seus concorrentes extra continentais, apesar da falta de know-how histórico para lançar artistas pelo mundo, são a capacidade de fazê-los serem absorvidos por adolescentes que falem qualquer língua; o traquejo de fazê-los soarem planetários mesmo saindo de um território estigmatizado pelo secularismo oriental de suas sonoridades; a apropriação da linguagem do universo pop norte-americano; e, algo passível de análises sociológicas que ainda não vieram, a inserção da figura asiática entre os ídolos do planeta.
E vem o fator que muitos observadores do que está acontecendo com o Blackpink preferem ignorar: a música. Elas precisam ser ouvidas, e não com uma audição rápida, como a que fez a Revista Elle classificar Venon Pink como “música cativante mas desconcertante, uma mistura desorientadora de rap, vocais flutuantes e um refrão anti-drop.”
Born Pink, o disco, soa como uma evolução do único trabalho de estúdio anterior. Pink Venon, o “veneno rosa”, é um rap pesado, bem produzido e gravado com graves poderosos. As vozes de Jisoo, Jennie, Rosé e Lisa se revezam em outras músicas de poder de alcance incontestável: Shut Down, Typa Girl, o rock Yeah Yeah Yeah, a balada rocker Hard to Love, a balada lover The Happiest Girl, o indie rock quase grunge Tally e a ultra pista de Ready For Love. Algumas delas com uma espécie de 2% de ‘cota Coreia’ – algo que lembre suas origens, nem que seja no timbre das vozes.
O arranjo de Pink Venon conta com instrumentos coreanos, como o geomungo, uma espécie de cítara asiática originada no século V. Um detalhe curioso, mas que desaparece no resultado final. Já Hard to Love é dance pop dos anos 90, sem nada de regionalismos ou representatividades gentílicas. O drippy, uma variação de discurso ‘gotejante’ do rap, Shut Down tem um violino repetindo um riff, que não é só um riff. Aquelas seis notas, dispostas como estão, pertencem ao terceiro movimento do Segundo Concerto para Violino, de Paganini.
A precisão de acerto dos sul-coreanos faz inveja às experiências historicamente desenvolvidas pelo Ocidente. Criar artistas em salas de reunião é uma praxe que ninguém nunca assumiu com o mesmo despudor. Os produtores europeus e norte-americanos fazem isso desde os anos 70, emplacando grupos e cantores que culminaram no case Milli Vanilli, dupla alemã lançada em 1988, ano em que a ficção foi longe demais. A voz colocada nos sucessos que levaram a dupla a ganhar um Grammy de artista revelação em 1990 não era deles, mas de um cantor de estúdio.
O funk e as duplas sertanejas representam o Brasil no campo desta ‘poplogia’, espécie de ciência do pop que consiste em criar artistas de massa seguindo critérios cientificamente comprovados. Grandes agências contratam nomes com potencial de estouro, propõem a assinatura de um contrato para assegurar de que não haverá traição e investem alto na construção de um ídolo. Comprar espaços em rádios e negociar lugares em festivais é uma velha prática, mas a novidade é o investimento pesado em lugares de destaque nos charts da plataformas de streaming. Em geral, vence quem tiver mais bala na agulha.
A história do fenômeno sul-coreano deverá ser contada com detalhes tão arrebatadores quanto sombrios, mas não agora. Por enquanto, a indústria comemora. Ela conseguiu a chave para criar sucessos de retorno astronômico atingindo o coração de seus fãs.
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