Momentos antes do show do Pavement, banda norte-americana responsável por fechar as atividades de um dos palcos montados pelo festival C6 Fest no Parque Ibirapuera, neste domingo, 19, o percussionista Bob Nastanovich leu um recado ao público de que a performance a seguir seria dedicada a Fernanda Azevedo, produtora mineira e ícone da cena alternativa do estado, morta alguns dias antes, grande fã do grupo.
Pessoas, espalhadas pela plateia, levantavam os pulsos ou batiam palmas. Eram conhecidos de Fernanda, emocionados, surgidos de todos os cantos do espaço.
Em um festival daqueles massivos, com números de públicos próximos dos seis dígitos por dia, esta cena não existiria: um headliner, como é conhecida a principal atração da noite, capaz de olhar nos olhos do público, próximo o bastante para ver lágrimas que escorriam em rostos de pessoas que perderam uma amiga de forma repentina.
Mas o C6 Fest não é um desses festivais anabolizados. Veja bem, os headliners de domingo não custam mais de 1 milhão de dólares (mais de cinco milhões de reais), cifra que se tornou o novo “salário mínimo” operado pelos artistas que costumeiramente encabeçam os festivais populares, como Lollapalooza, Rock in Rio e The Town.
Longe disso: as atrações principais do domingo, 19 de maio, custaram um quarto deste montante, no máximo: o cantor de R&B e soul Daniel Caesar e a banda de rock alternativo citada no início deste texto.
O mesmo se repetiu no sábado, quando a dupla de synth pop Soft Cell e a banda de blues rock Black Pumas se dividiram entre os dois principais palcos montados nas proximidades do Auditório Ibirapuera — muito bem acompanhadas das queridinhas do indie e do R&B, respectivamente, Romy e Raye.
Cachês modestos, bem distribuídos, criavam um quarteto de atrações invejável, deliciosamente sortida para públicos diferentes.
Tudo é diminuto, até na quantidade de pessoas: foram pouco mais de 25 mil pessoas (25.300, segundo informou a organização). Longe de ser um problema. Na verdade, se o C6 Fest realmente der certo (entenda-se, ser viável do aspecto financeiro para quem o realiza), será um alívio para o mercado de shows brasileiro, justamente por fugir das aspirações de gigantismo que criam acéfalos e monstruosos eventos musicais com medrosas decisões de curadoria baseadas no alto risco e na entrega financeira mais segura possível.
O C6 Fest de 2024 incluía 4 palcos: com shows de jazz no interior do Auditório Ibirapuera, DJ sets no Pacubra, que criava uma espécie de inferninho descolado para os interessados nos beats eletrônicos, além dos dois palcos maiores, a Arena Heineken, espaço a ocupar a área externa atrás do Auditório do Ibirapuera, e a Tenda Metlife, local mais intimista, com uma capacidade limitada, montada um tanto distante dali.
Deu errado no primeiro ano, correção para o segundo
Na primeira edição, em 2023, o festival buscou inspiração em um tradicional e já extinto Free Jazz, no qual os ingressos eram vendidos por acesso a cada palco (se a pessoa quisesse assistir a atrações de dois palcos diferentes, compraria dois ingressos). A estratégia, que deu certo três ou quatro décadas atrás, afugentou o público na estreia do C6 Fest – uma pena, porque ótimos artistas passaram por lá, de Arlo Parks a The War on Drugs.
Já em 2024, a organização do festival aprendeu com as próprias dores em muitos aspectos (inclusive em juntar os acessos em um mesmo ingresso).
Há pontos de atenção, evidentemente. O ingresso ainda é caro e o Ibirapuera cria barreiras no número de palcos e distâncias de caminhada problemáticas, além das limitações de horário e som. O que nos leva a uma arena dentro da qual as árvores, embora lindas, atrapalhem bastante a visão do público do palco, e distante do palco principal. Por mais bonito que seja o espaço, ao se somar as questões anteriores ao valor do aluguel a ser pago (que ajuda a aumentar o preço do ingresso), e à pouca oferta de transporte público além dos ônibus, cria um quebra-cabeça sobre a melhor localização para este festival boutique.
Mesmo assim, com estes temas a serem tratados, a segunda edição fluiu imensamente melhor.
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Sem neon, luzes chamativas e cegantes
Esqueça as ativações de marca chamativas e luzes neon que arremessam logomarcas nas retinas sem pedir licença (você sabe de quais festivais estou falando). C6 Fest era, pelas palavras do público presente, um festival chique. Bem decorado, sem exageros, com toda a cenografia em preto, o que se destacava era, de fato, a música.
E a curadoria, sim, deu aula. Em vez de agradar às massas, buscaram-se os nichos. Esqueça a história dos festivais gigantescos, cujas fichas são colocadas nos “ingressos vendidos garantidos” de nomes como Maroon 5 ou Foo Fighters, com bases de fãs testadas e comprovadas, para voltar a cada dois anos e garantir seus 40 mil ingressos vendidos e, com isso, confirmar um novo cheque de milhões de reais em patrocínio.
Em vez de brigar em leilão para trazer estes nomezões, o C6 Fest investe no “show da vida” de alguns. Pavement não é a banda favorita de 50 mil pessoas em São Paulo, mas para aquelas 5 mil (com sorte) aglutinadas na tenda do Ibirapuera, era um sonho ver o grupo tão de perto assim, em uma rara segunda performance da banda no Brasil.
Cantavam, o público, não só os hits ou a recentemente bem-sucedida faixa Harness Your Hopes, hit do TikTok - a turma vibrava com lados B, como We Dance, Type Slowly e Frontwards. Ruído de distorção, pandeiros tocados propositalmente mais alto do que deveriam, vocais provocativamente desafinados, deboche: uma ode ao weird dos anos 90.
Bolhas, adoráveis bolhas
É nos nichos que o C6 Fest se encontra - e encanta.
No sábado, Romy fez do fim de tarde uma ode aos beats coloridos afetuosos, tão distantes da penumbra indie gótica da sua banda, o The xx, enquanto Raye certamente conquistou mais alguns fãs em uma apresentação que partiu dos standards de jazz tradicionais para uma festa eletrônica. Simpática, a inglesa de voz mágica contou histórias, riu e emocionou-se com a reação do público às músicas mais emotivas.
Ainda no sábado, 18, o Soft Cell encarou um público inquieto e mais velho, divido entre curiosos e fãs die-hard (fanáticos, mesmo), que sequer imaginavam ter a chance de ver a dupla que criou a música ícone Tainted Love ao vivo, em carne, rugas e osso.
A noite, encerrada por Black Pumas, reuniu um vistoso número de pessoas em frente ao palco montado nas costas do Auditório do Ibirapuera. A banda, uma dupla que ao vivo ganha a presença de backing vocals e mais instrumentos, agiganta-se com o cantar de Eric Burton, que simpático se meteu no meio do público e quase não conseguiu voltar, e aos estudos musicais do guitarrista Adrian Quesada, que funde a distorção do rock, ao groove do blues e às descobertas da música latino-americana.
No domingo, além do Pavement, com sua performance energética, caótica e deliciosamente estrambólica, Cat Power fez uma bela homenagem a Bob Dylan em um repertório inteiro dedicado à fase de transição do bardo, do período de 1996, quando ele abandonou o folk e seguiu em direção à guitarra elétrica. Power, conhecida do público daqui, fez um show justo (enxuto demais, infelizmente, por culpa do tempo que tinha de palco) e bastante reverente.
Ao mesmo tempo, no outro palco (na área externa do Auditório), o Baile do Cassiano fez uma adorável e dançante homenagem ao cantor e compositor de Campina Grande, morto em 2021. Sob a batuta do bamba Daniel Ganjaman, as vozes de Fran e Preta Gil, Liniker, Luccas Carlos e Negra Li se encontraram com o funk e o groove de Cassiano, ícone do R&B bastante brasileiro.
Quando Daniel Caesar subiu ao palco do Auditório Ibirapuera, a noite já esfriava (em temperatura) e casais formados se abraçavam, enquanto casais não-formados ganhavam coragem com as melodias charmosas do norte-americano para aproximar os corpos e, quem sabe, trocar algumas carícias.
Sorridente, Caesar fez as vezes de um Marvin Gaye contemporâneo, na sua versão romântica, cantando os amores nestes novos tempos, difíceis, secos e áridos, com afeto e delicadeza. Não é, ainda, um cantor de multidões, mas Best Part, música gravada com a cantora H.E.R., é, definitivamente, um dos hinos românticos dos novos anos 20. Para o que o C6 Fest se propõe, é um encerramento de noite bonito.
Sem agredir o público, o C6 Fest chegou ao fim da segunda edição mais vibrante do que a primeira, ainda mais certo de qual caminho pode e deve seguir. Acerta onde os grandalhões de 100 mil pessoas tropeçam, caem e quebram um dente: com curadoria afiada, pensada em públicos específicos, e cria pequenos oásis de puro deleite musical.
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