Em dias chuvosos, o nome de Cacique Cobra Coral domina o imaginário brasileiro. No primeiro dia de The Town, uma tempestade atingiu o festival e fez com que vários pontos do Autódromo de Interlagos, em São Paulo, ficassem alagados ou enlameados. O motivo apontado pela fundação que incorpora o Cacique Cobra Coral? Eles não foram convocados para o evento.
A relação de Roberto Medina, criador do Rock in Rio e do ‘evento irmão’ paulistano, com a fundação esotérica, porém, vem de muitos anos. Em uma publicação feita no Instagram da Fundação Cacique Cobra Coral nesta segunda-feira, 4, representantes lamentaram o rompimento do empresário e disseram terem alertado sobre um suposto “verão adiantado” que atingiria o primeiro dia do festival.
Ao contrário do que alguns pensam, o Cacique Cobra Coral não é uma pessoa física, mas uma entidade que conseguiria intervir em eventos climáticos e desastres naturais. O Estadão tentou contatar os representantes por diversos meios de comunicação para explicar o trabalho da fundação, mas não obteve sucesso.
Veja, abaixo, perguntas e respostas sobre a Fundação Cacique Cobra Coral e sua relação ‘tempestuosa’ com festivais de música, a partir do site oficial da instituição, da assessoria do The Town, do biógrafo do Rock in Rio, Luiz Felipe Carneiro, e do biógrafo de Roberto Medina, Marcos Eduardo Neves.
O que é a Fundação e o Cacique Cobra Coral?
O site da Fundação Cacique Cobra Coral (FCCC) define sua missão como a de “minimizar catástrofes que podem ocorrer em razão dos desequilíbrios provocados pelo homem na natureza”. A instituição foi criada por Ângelo Scritori, médium que morreu em 2002 aos 104 anos.
Hoje, conforme as informações do portal, a fundação tem à frente a filha de Ângelo, a médium Adelaide Scritori. A instituição descreve que, no dia em que a mãe de Adelaide entrou em trabalho de parto, o espírito de Padre Cícero teria se manifestado por meio de Ângelo.
E quem é o tal cacique?
No dia do nascimento de Adelaide, uma forte geada atingia o sítio da família no Paraná. Padre Cícero teria alertado Ângelo de que a filha nasceria com a capacidade de se comunicar com um poderoso espírito capaz de controlar fenômenos naturais. O espírito em questão era Cacique Cobra Coral, que, segundo as crenças, já teria sido também de Galileu Galilei e Abraham Lincoln.
Qual é a relação de Paulo Coelho com a Fundação?
A FCCC começou a crescer após firmar relações com prefeituras e com Medina para o Rock in Rio. Ela passou a ganhar fama internacional quando o escritor Paulo Coelho assumiu o cargo de vice-presidente durante alguns anos do início da década de 2000.
A Fundação Cacique Cobra Coral recebe dinheiro público?
Não é só para empresas privadas que a Fundação Cobra Coral presta serviços. Prefeituras, como a do Rio de Janeiro, e órgãos do governo já mantiveram relações ou tiveram reuniões com a instituição. Em 2021, o Ministério de Minas e Energia (MME) precisou publicar uma nota de esclarecimento sobre uma reunião que teve com Osmar Santos, um dos representantes da FCCC.
Segundo o comunicado, a reunião atendeu a uma solicitação de Osmar para tratar sobre a crise hídrica que atingia o País. O representante pediu a participação do então ministro Bento Albuquerque, que, segundo o MME, sequer foi informado do ocorrido.
“Tendo em vista que a requisição de audiência recebida pelo MME alertava para os temas ‘Blackout no Centro Sul a partir de 16/10/21 se medidas urgentes não forem adotadas’ e ‘tragédia econômica x energética’, a avaliação da Secretaria de Energia Elétrica do MME foi por dialogar com os requisitantes da reunião, a fim de esclarecer as medidas que vêm sendo adotadas pelo Governo Federal, desde 2020, visando prover a devida segurança energética aos consumidores brasileiros”, informou o órgão.
Apesar de manter relação com instituições públicas, porém, a fundação nega que cobre dinheiro público para prestar seus serviços. A instituição exige apenas relatórios anuais, que precisam ser enviados em outubro, “informando o que fizeram de obras viárias que visam minimizar tais fenômenos e o que planejam fazer no ano seguinte”.
Em janeiro, o FCCC publicou um story no Instagram informando que havia suspendido os convênios com a prefeitura e o estado do Rio de Janeiro por não terem recebido os respectivos relatórios.
Qual a relação da Fundação Cacique Cobra Coral com o Rock in Rio?
A fundação manteve uma relação ativa com Roberto Medina, criador do Rock in Rio e do The Town, mas isso não vem desde a primeira edição. O primeiro Rock in Rio, inclusive, foi marcado pela chuva e a lama que tomou conta do local, como conta Luiz Felipe Carneiro, biógrafo do festival.
“Parece que, para um festival ser consagrado, ele precisa de lama, como foi no Woodstock”, brinca Luiz. Medina contrataria os serviços do Cacique Cobra Coral apenas em 2001, ano em que o evento voltou a acontecer em Jacarepaguá, como foi na primeira edição de 1985. Deu certo: o Rock in Rio não enfrentou chuvas.
A relação da FCCC com o empresário, porém, começou a ficar ‘estremecida’ a partir de 2011. Segundo Luiz, representantes foram barrados em um dos dias do festival por chegarem ao local sem adesivos de credenciamento. Choveu e o porta-voz da fundação atribuiu isso ao impedimento na entrada.
Em 2013, conforme o biógrafo, representantes foram novamente chamados, com um posterior sucesso na ausência de chuvas. Já em 2015, a fundação foi convocada de novo, mas choveu. Medina parou de contratar os serviços em 2015 e 2017. O resultado? Chuvas no festival.
Na última edição do evento, o Rock in Rio também deixou de contatar a FCCC. Choveu novamente.
Quanto custa para contratar a Fundação Cacique Cobra Coral?
O valor para contratar os serviços para controlar o tempo é incerto. A FCCC não divulga valores e esclareceu, em uma postagem do Instagram, que mantém ‘sigilo absoluto’ até em seus atendimentos empresariais.
Luiz Felipe Carneiro, porém, aponta uma estimativa do valor pago por Roberto Medina em 2001. Conforme ele, o valor inicial exigido foi de US$ 10 mil – na cotação atual, o valor equivale a R$ 49,7 mil.
Um acordo teria sido feito pelo empresário para que uma entrada de US$ 2 mil fosse depositada e, caso não chovesse, o restante seria pago. Como o resultado foi a ausência das chuvas, a quantia integral foi entregue por Medina, conforme o biógrafo.
Essa informação, no entanto, não é a mesma que a presente no livro Vendedor de sonhos: a vida e a obra de Roberto Medina. O valor realmente foi quitado pelo empresário depois de a chuva não atrapalhar o festival, mas a quantia total teria sido de R$ 10 mil, e não dólares.
Uma passagem do livro, publicado em 2006, narra a relação que se seguiu entre o festival e a fundação: “E realmente choveu em vários pontos do Rio, mas nas adjacências da Cidade do Rock, nenhuma gota. ‘A partir de então’ - conta Medina – ‘para qualquer evento aberto que eu realize, contrato a Fundação. O Cacique já faz quase parte da empresa’”!
O The Town vai voltar a contratar a Fundação Cacique Cobra Coral após as chuvas do primeiro dia?
Após as chuvas que atingiram o The Town no primeiro dia do festival, a fundação usou seu perfil do Instagram para criticar o fato de não terem sido convocados. A FCCC publicou um vídeo de um perfil no TikTok que dizia que a instituição teria sido acionada por um patrocinador para impedir que não chovesse durante a montagem. A fundação, porém, não teria tido influência em nenhum dos dias do evento.
Na publicação, a FCCC afirma que mantém sigilo de seus atendimentos empresariais, “exceto quando o próprio cliente escreve sua biografia e dedica seis páginas à FCCC, como fez Dr. Roberto Medina dez anos atrás”.
Contudo, Marcos Eduardo Neves, biógrafo de Roberto Medina, esclareceu à reportagem que os trechos de seu livro que mencionam a fundação aparecem em apenas duas páginas da obra e, segundo ele, poderiam até caber em apenas uma.
Em contato com o Estadão, a assessoria de imprensa do festival na capital paulista ressaltou que a parceria entre o Rock in Rio e a FCCC não existe ‘há muitos anos’. Por esse motivo, o The Town não comenta sobre o assunto.
*Estagiária sob supervisão de Charlise de Morais
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