O show Caetano & Bethânia, apresentado pela primeira vez em São Paulo na noite deste sábado, 14, tem muitos caminhos e subtextos: religiosidade, família, parcerias, sucesso e festa - para citar alguns. No entanto, nada é mais comovente quanto o gesto de Maria Bethânia, 78 anos, em se colocar por inteira em uma grande homenagem ao irmão Caetano Veloso.
O show que une os irmãos no palco é mais sobre Bethânia do que Caetano. Por generosidade - jamais por diferença de valor. Eles não se encontravam no palco de maneira tão grandiosa desde 1978, quando também excursionaram juntos (leia aqui como foi).
Bethânia, sempre com a gana de ter as rédeas bem firmes em suas mãos, abriu mão de um punhado de ritos e rituais para estar ali, por inteiro, como esteve esta noite no Allianz Parque, e como faz desde agosto, quando a série de shows se iniciou. Inclusive da feitura de mais um álbum de carreira, entre outras questões que moram nos bastidores. Foi bom vê-la despida de suas personas. Era a irmã.
É como se Bethânia dissesse em silêncio algo como: “veio comigo, vai voltar comigo” - Caetano foi responsável por acompanhar a irmã ao Rio de Janeiro, em 1965, quando ela fez sua estreia no show Opinião. Pegando emprestado a religiosidade da cantora, e todo seu sincretismo, Bethânia acolhe Caetano como Nossa Senhora. Ou Oyá, a orixá do vento e dos raios.
Ainda é incerto o que Caetano, 82 anos, fará a partir de março de 2025, quando a turnê supostamente se encerrará. Assim como Milton Nascimento e Gilberto Gil, é provável que ele queira se exonerar dos grandes shows. Uma turnê oficial de despedida? Talvez. Se ela não ocorrer, Caetano& Bethânia terá sido um grande fecho para uma carreira brilhante.
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A marcha Alegria, Alegria, que apresentou Caetano ao grande público em 1967, se junta à Gente, canção no qual ele reverencia os seus e o povo brasileiro. A visão política-social sempre tão presente em seu repertório. No meio de ambas, Os Mais Doces Bárbaros, uma prova de boa intenção na invasão dos baianos na música popular brasileira. Os bárbaros contra os caretas, para ficar em uma expressão que Caetano adora.
O público de aproximadamente 40 mil pessoas que lotou o Allianz Parque assistiu a 60 anos passarem pouco mais de 2h30 de apresentação. E puderam perceber, em um roteiro bem amarrado, como Caetano e Bethânia se firmaram em conceitos sólidos daquilo que queriam transmitir ao público ao longo da carreira. E que ainda refletem o Brasil de 2024.
Tropicália, cantada por Caetano, fala em “urubus que passeiam entre os girassóis”. Marginália II, de Gil e Torquato Neto, na voz de Bethânia, relata que “aqui é o fim do mundo” e temos “bananas para dar e vender”. Está tudo nas manchetes de jornais. E nas letras de rap e funk.
Motriz é para dona Canô, a matriarca dos Veloso. Não Identificado era a canção preferida de seu Zeca, pai dos irmãos. A reverência à religiosidade, algo herdado da família, começa com A Tua Presença, passa pelo profano dos sambas de roda do Recôncavo Baiano, chega em Milagres do Povo, Dedicatória e Filhos de Gandhi, essa última, de Gil e para Gil no show.
E aí há um corte. E um ponto negativo. O bloco solo de Caetano é repleto de obviedades. Para quem conhece a fundo sua obra, fica difícil compreender como ele abre espaço para, pela enésima vez, cantar Sozinho, de Peninha. A canção foi seu grande sucesso comercial da carreira - e o ajudou a ficar evidência nos anos 1990, década sombria para a MPB. Faz igualmente com Você Não Me Ensinou a Te Esquecer.
Se a intenção era sair de seu repertório, havia opções menos batidas, de compositores da mesma maneira importantes em suas trajetória, como Tom Jobim (Eu Sei Que Vou Te Amar), Cazuza (Todo O Amor Que Houver Nessa Vida) e Jorge Ben Jor (Ive Brussel). Ausências mais sentidas ainda: Trem das Cores, Trilhos Urbanos, Love, Love, Love e Queixa.
Caetano sabe, no entanto, que a voz do público é a voz de Deus. É nesse bloco que ele canta o louvor Deus Cuida de Mim, gravado juntamente com o pastor Kleber Lucas em 2022. Um “aceno” aos evangélicos. Um hit gospel também. É o Caetano combativo e provocador, como nos velhos tempos. O recado, na verdade, é mais uma vez para sua “Gente”.
Nem todos compram a ideia. Ele fala no interesse em que o crescimento das igrejas evangélicas no País lhe desperta. Um tímido aplauso e uma tímida vaia é tudo que se houve no momento.
Bethânia, sempre segura, impõe-se solo igualmente pelo viés radiofônico e de amor. Brincar de Viver, Negue, Explode Coração são seus hits. As Canções Que Você Fez Pra Mim, de Roberto e Erasmo Carlos, remete a seu álbum mais bem-sucedido, dedicado à dupla de compositores em 1993. E um dos compositores queridos da cantora - a turnê de 1978 tinha Falando Sério. Vida, de Chico Buarque, presente no início da turnê, não está mais no setlist. Escolha correta. Ela cabe na carreira de Bethânia, mas não nesse show.
Juntos novamente em cena, Caetano e Bethânia cantam o encontro de Rio e Bahia para desaguarem em emocionante homenagem a Gal Costa (1945-2022), com Baby e Vaca Profana. Bethânia olha para baixo, olhar perdido em alguma lembrança da amiga, já não tão próxima em seus últimos anos de vida.
Para usar uma expressão da moda, Bethânia se mima ao fazer o irmão cantar Guita, de Raul Seixas. Forte, como ela gosta.
No contexto, O Quereres dá a senha do que é imprevisível, embora o compositor a tenha feito para um amor. Caetano e Bethânia escolheram Fé, sucesso de Iza, como uma forma de demonstrar que estão conectados com a música de hoje. E a força da mulher. Mais uma vez, o dedo de Bethânia.
Tudo de Novo, canção feita para a turnê de 1978, prova que tudo é cíclico em tudo o que é proposto no roteiro. “Eis aqui tudo de novo”. Como um afago em São Paulo, como eles têm feito nas cidades em que passaram, Bethânia cantou Sampa. É preciso destacar a direção musical de Jorge Helder. Impecável em um show que tem samba, samba de roda, rock, forró e balada.
A vinheta de Odara, no final, soa como o sabor da festa que foi o encontro de Caetano e Bethânia - ele também existe para isso. “Sou da Patrulha Odara, e daí?”, esbravejou Caetano em 1979, quando foi chamado de alienado e escapista por fazer uma música para divertir em plena ditadura militar. Em 2024, nada disso faz mais sentido. Ou faz.
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