Caetano Veloso: CD perturbador

O título Noites do Norte é inspirado em trecho do livro Minha Formação de Joaquim Nabuco, musicado no disco, que revê idéias como a de que a escravidão marcou o Brasil, espalhando "por nossas vastas solidões uma grande suavidade... com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos"

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Por Agencia Estado
Atualização:

Caetano Veloso lançou seu novo disco Noites do Norte, no fim da tarde de segunda-feira, na Internet. Pôs à disposição do público, usando um portal, trechos de cada uma das 12 faixas do CD, mais uma longa entrevista, fotos e comentários sobre as músicas do repertório. Na entrevista, Caetano diz, generalizando, que os cadernos de cultura dos jornais são piores do que os produtos da indústria cultural - e aqui não generaliza. Cita Sandy & Júnior, Alexandre Pires e Ivete Sangalo. Na abertura da entrevista, o entrevistador afirma que Caetano Veloso está comprando uma briga. Não se compre a briga. Importa menos o discurso do que a obra do artista. Noites do Norte é um disco mais perturbador do que qualquer declaração que possa vir de seu autor. Depois do sucesso comercial - Caetano Veloso produz retumbantes sucessos comerciais - com a tola canção Sozinho, de Peninha, incluída no repertório do CD Prenda Minha (que, por conta deste retumbante sucesso, vendeu mais de 1 milhão de cópias), o compositor voltou ao discurso - musical e poético - mais elaborado, ou melhor: tão elaborado quanto sempre foi o seu trabalho, formador de público ouvinte sofisticado, definidor de parâmetros de gosto menos popularesco. Mesmo quando o assunto tratado nas canções, os ritmos sobre os quais se apoiam as melodias, a origem profunda das melodias - mesmo quando tudo o que serviu de ingrediente para a composição de Caetano veio da tradição popular, seu trabalho lançou mão de tais elementos para dar-lhes feição culta, na expressão rigorosa da palavra. Noites do Norte tira o título de um texto de Joaquim Nabuco, de um trecho do livro autobiográfico Minha Formação. É um escrito em que o abolicionista diz: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do País, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte." Ecos - O texto foi escrito há um século. Caetano pinçou-o de Minha Formação e o musicou. É a segunda faixa do disco e uma de suas diretrizes. É possível ver ecos desse discurso na faixa de abertura, Zera a Reza: "A pureza desse amor/ Espelhos pelo carnaval/ E cada cara e corpo é desigual/ Sabe o que é bom e o que é mau/ Chão é céu/ E é seu e meu/ E eu sou quem não morre nunca." Há pouco tempo, Gilberto Gil reclamava que os analistas de sua obra - e de outras obras - têm a mania de tentar enxergar razões ocultas nas coisas que escreve, atribuindo-lhe intenções que não o moviam quando escreveu. Talvez a bossa-afro-pop Zera a Rez a seja anterior à descoberta do texto de Joaquim Nabuco - talvez tenha levado o autor a interessar-se pela obra do abolicionista. Levantar essas questões é importante para se estabelecer critérios de abordagem da obra de Caetano (e a de Gil, etc.), um dos artistas mais interferentes da cena brasileira desta metade de século. Sérgio Sampaio não estava fazendo música política quando escreveu Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, que virou hino de resistência política ao regime de 64, e a música nunca pôde ser vista de outra maneira. As possíveis alusões a Nabuco seguem em 13 de Maio, afoxé de fluidos caribenhos: "Dia 13 de maio em Santo Amaro/ Na Praça do Mercado/ Os pretos celebravam/ (talvez hoje inda o façam)/ O fim da escravidão/ Da escravidão/ Tanta pindoba!/ Lembro do aluá/ Lembro da maniçoba/ Foguetes no ar/ Pra saudar Isabel ô Isabé/ Pra saudar Isabé." Nada mais natural do que uma regravação, com toques de samba-reggae, de Zumbi, de Jorge Ben (a assinatura está assim, no disco; a composição é de antes da adoção do Ben Jor pelo autor): "Aqui estão os homens/ Há um grande leilão/ Dizem que nele há uma princesa à venda/ Que veio junto com seus súditos/ Acorrentados num carro de boi." E se Jorge Ben adverte que tudo mudará com a chegada de "Zumbi" ("Eu quero ver/ Eu quero ver"), paira sobre a ameaça a ambigüidade da "saudade da escravidão" declarada por Joaquim Nabuco no livro inspirador de Caetano Veloso. A questão da raça, do interracial, da nacionalidade, da internacionalidade seguem orientando Noites do Norte. Aparecem em Rok´n´Raul - Raul Seixas dizia que era americano apenas havia nascido no lugar errado. Caetano parte disto para concluir que não importa tanto: "Mas minha alegria/ Minha ironia/ É bem maior do que essa porcaria/ Ter um rancho de éter no Texas/ Uma plantation de maconha no Wyoming/ Dana de Axé Dodô e Curuzu/ A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul." De repente, na sexta faixa, o disco muda de tom. Os dois primeiros compassos da canção Michalengelo Antonioni, dedicada ao cineasta italiano (e escrita em italiano) remetem a uma antiga canção de Guinga e Paulo César Pinheiro, Passarinhadeira, numa citação que por certo não é intencional. É um número suave, delicado, de belíssima poesia. Mais impressionante são os enigmáticos versos de Cantiga de Boi: "Cantiga de boi é densa/ Não se dança nem se entende/ Doença, cura e repente/ E desafio ao destino/ Menino já tem saudade/ Do que mal surgiu à frente:/ Alma, CD, boi, cidade." Na faixa mais bonita, Cobra Coral, os versos são de Wally Salomão, musicados por Caetano. O canto em trio vocal completa-se com as vozes de Lulu Santos e Zélia Duncan. Uma das poucas canções de amor de "Noites do Norte" é "Ia" - mas nem mesmo na canção de amor Caetano faz concessões ao gosto fácil, apoiando os versos queixosos ("Surdo o amor quebra em mim/ Sem fim/ Esse instante seria/ Ia") em melodia dissonante, cromática, daquelas que poucos poderão sair cantarolando à primeira ouvida. Mais imediatamente acessível é a bossa Meu Rio - mas nem tanto. Uma curiosa participação especial - a do cavaquinhista Dudu Nobre, compositor e músico da banda de Zeca Pagodinho - dá toque suburbano à bossa que trata de subúrbio, mesmo: é um relato autobiográfico de Caetano, que morou no subúrbio carioca quando adolescente - e a paisagem mudou: "Esperava o bom do som: João/ Tom Jobim/ Traçou por fim/ Por sobre mim/ Teu monte-céu/ Teu próprio deus/ Cidade." Bossa estilizada - Só uma das músicas não é inédita, "Sabiá", que já foi gravada por Marisa Monte. Mas o registro da cantora arredonda a melodia acidentada da bossa estilizada, e Caetano, ainda uma vez, faz questão de enfatizar os possíveis estranhamentos. "Noites do Norte" fecha-se com Tempestades Solares versos de crise amorosa, advertência, canção de desamor - para quem o provocou "com as mucosas venenosas de sua alma de mulher", provocando tempestades solares no coração atingido. A advertência: "Adeus/ Ou seja outra:/ Alguém que agüente o sol." Dessa forma, Noites do Norte começa com o espanto de quem viu em Joaquim Nabuco a nostalgia da escravidão - e termina com a autroploclamação de ser centro do mundo. Talvez não haja nenhuma relação entre as primeiras canções e essa última - talvez seja apenas a coleção de canções disponíveis, enfeixadas no CD do ano. Noites do Norte não é trabalho para passar em branco. Não é para ser ouvido uma vez só nem dele se podem tirar conclusões apressadas - não há gratuidade no que faz Caetano Veloso. Defendendo a indústria cultural (ou, pelo menos, justificando-a, ao compará-la a outros ramos de atividade), ele fez, ao mesmo tempo, um disco rigorosamente não-comercial e deve ter um discurso pronto, que una as pontas. Resta aguardar sua palavra. Frua-se a complexidade provocativa do novo CD, enquanto isto. Noites do Norte. Disco de Caetano Veloso, já nas lojas. Lançamento Universal, preço médio: R$ 20,00

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