Em 1971, Jards Macalé aceitou o convite de Caetano Veloso para ir a Londres e trabalhar no hoje cultuado disco Transa. Lá, recebeu duas letras do amigo exilado. Uma delas era Esse Cara, gravada por Maria Bethânia, para a qual Macalé se recusou a fazer a melodia (posteriormente, Caetano disse que o músico não quis ser associado aos versos de desejo por um homem). A outra, chamada Corta Essa (veja letra mais abaixo), permanece inédita.
A parceria de dois dos mais importantes compositores brasileiros de todos os tempos - eles se apresentam neste fim de semana em São Paulo com o show comemorativo de 50 anos de Transa - está no Arquivo da Censura Federal. Até o momento, não há nenhuma outra música conhecida que leve a assinatura Macalé-Caetano.
Corta Essa foi enviada aos censores da ditadura na mesma leva de músicas como 78 Rotações, Let’s Play That e Meu Amor Me Agarra E Geme E Treme E Chora E Mata, gravadas por Macalé em seu primeiro disco, de 1972. Todas foram liberadas pelo órgão repressor à época - ou seja, estavam aptas a serem lançadas.
Por que Corta Essa não entrou no disco de Macalé - ou jamais foi gravada ao longo desses mais de 50 anos? Mistério.
Em janeiro de 1972, recém-chegado de Londres, Macalé deu uma entrevista ao jornal O Globo, antes mesmo se lançar seu primeiro álbum. Ele cantou Corta Essa para o jornalista que indagou sobre novos projetos. A matéria reproduziu os primeiros versos no texto. São os mesmos que estão arquivados na Censura. “Chegou cambaleando pela escada/E quando quando já não ia dizer nada/ Falou/Olha aqui amizade/Vamos fazer um milagre”.
A letra completa de Corta Essa
“Chegou cambaleando pela escada
E quando já não ia dizer nada
Falou:
Olha aqui amizade
Vamos fazer uma milagre
Falou:
Esvoaçando os vidros da cidade
A primeira tarde sim começa assim
A primavera tarde sim começa
Corta essa, corta essa, corta essa
A terceira praça não começa em mim
E a quarta parte não te cabe baby
Basta de promessa, prosa, pressa
Corta essa, corta essa, corta essa
Topa parceiro? Vem nessa que eu vim?
Promessa é dúvida, e a vida continua
E a rua e a casa e a rosa continua
A cidade continua”
Procurado pelo Estadão, Macalé disse, por meio de sua assessoria, que não faria qualquer comentário. “Não tenho muito a falar sobre essa música”, foi a resposta enviada à reportagem. Caetano Veloso não respondeu aos pedidos de comentário. O espaço segue aberto.
Em 2013, quando se apresentou no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, Macalé confirmou em uma entrevista à revista Veja que Caetano, na época do Transa, lhe entregou duas letras. Uma, segundo ele, era, de fato, Esse Cara. A outra, ele chamou de Falou, palavra que aparece na letra de Corta Essa.
Meses antes, em outro show no Auditório Ibirapuera, Falou, ou Corta Essa, constava do programa distribuído ao público. Era a última música listada. O jornalista Renato Vieira esteve nesta apresentação. “Garanto que ele não tocou essa música”, diz Vieira, que enviou a letra à reportagem. Evangelina Maffei, uma fã argentina de Caetano, já havia feito menção à música tempos atrás.
Corta Essa surpreendeu até mesmo Eucanaã Ferraz, profundo conhecedor da obra de Caetano, autor do livro Letras, no qual aborda a obra de Caetano. “Boa descoberta”, disse ele ao Estadão.
Em uma análise escrita após receber a letra (leia o texto completo aqui), Ferraz observou que a composição “soa um tanto obscura” nos dias de hoje. Ele buscou referências dentro da obra de Caetano, na Tropicália e, sobretudo, no contexto de Transa.
“Os versos de Corta Essa propõem a interrupção de um estado de coisas, de uma realidade desanimadora e indesejável e a consequente disposição para uma mudança radical: ‘fazer um milagre’. Estão aí o espírito da Tropicália e, de certo modo, o ânimo existencial, político e estético de Transa”, escreveu o poeta.
Caetano e Macalé estarão juntos novamente no palco neste sábado, 25, e na segunda-feira, 27, para o show comemorativo de 50 anos do álbum Transa, no Espaço das Américas. No disco, Macalé fez a direção musical e tocou guitarra.
As apresentações, que antes só ocorreram no Rio de Janeiro, onde foram gravadas, têm causado alvoroço entre os fãs de Caetano - ele relutou em cair na estrada com o show originalmente concebido para uma única apresentação no festival Doce Maravilha, em agosto deste ano.
Em conversa com o Estadão, Macalé, que previamente avisou que não falaria sobre Corta Essa, contou sobre a sensação de reencontrar Transa, mais de meio século depois, junto com uma plateia essencialmente jovem.
“É engraçado. Olho para o Caetano no palco e fico rindo. Eu conheço esse cara desde 1963! O disco tem uma história, era exílio, período complicado. Mas a gravação foi bem tranquila”, diz.
Serviço
Show Transa
Caetano Veloso
Convidados: Jards Macalé, Angela Ro Ro e Áureo Martins
Espaço Unimed, Espaço Unimed. R. Tagipuru, 795, Barra Funda
25 (ingressos esgotados) e 27/11, 21h30
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