Pobres Criaturas, novo filme do diretor grego Yorgos Lanthimos, chegou aos cinemas brasileiros no último dia 1º de fevereiro já consagrado com 11 indicações para o Oscar 2024, incluindo o de melhor filme e melhor direção. Além disso, é um sucesso de público e de crítica.
Estrelado pela Emma Stone, também indicada ao Oscar, o longa conta a história de Bella Baxter, uma espécie de versão feminina do monstro de Frankenstein. Uma mulher com cérebro de bebê, implantado pelo cientista Godwin Baxter, personagem de Willem Dafoe. Uma comédia/ fantasia típica de Lanthimos. Um universo particular. Para alguns, estranho.
Em determinado momento da trama que se passa no século 19, Bella, uma mulher adulta que está em busca de criar sua vida, se depara com uma cantora em uma sacada. Seduzida por aquela voz, Bella fixa sua atenção para o alto. Seus olhos se enchem de lágrimas e sua respiração fica mais curta.
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A voz podia ser estranha para a personagem Bella, mas é familiar para os brasileiros. A cantora recrutada por Lanthimos é a portuguesa Carminho, conhecida por sua proximidade com a música brasileira - ela tem uma ligação estreita com Caetano Veloso, já gravou com Milton Nascimento e dedicou um disco a Tom Jobim.
“Fiquei honrada com o convite, mas quis saber o que ele esperava de mim. Se ele queria uma fadista, genericamente falando, ou, de fato, conhecia meu trabalho”, conta Carminho em entrevista ao Estadão.
Carminho ficou mais à vontade depois de uma reunião com Lanthimos. O diretor buscava justamente algo que ela sempre fez muito bem: unir a tradição do fado à contemporaneidade.
A partir disso, eles começaram a discutir qual seria a canção mais indicada para a cena. O diretor queria algo ligado às origens do gênero. A escolha, então, foi por um fado menor. “Algo umbilical”, define Carminho. É triste e melancólico. Como o olhar de Bella.
Com a escolha, era imperativo que Carminho estivesse em cena. O fado menor só tem harmonia, não tem melodia. Cabe ao intérprete criar a melodia enquanto canta. Carminho fez isso em cena, ao vivo.
E mais: escreveu a letra de O Quarto. O single será lançado no próximo dia 15 de fevereiro no Brasil - uma outra versão da canção está em seu mais recente disco, Portuguesa, de 2023, mas com outra melodia.
A letra fala de quarto que está tão vazio que lá não cabe nem mesmo o ar. Essa ambiguidade, esse surrealismo, também está presente no filme
Carminho
Há outro importante aspecto: o fado permite sempre uma nova letra para antigas melodias. Exatamente o que busca Bella em sua jornada em Pobres Criaturas.
Carminho achou necessário que sua personagem estivesse em cena com uma guitarra portuguesa. Em uma cena curta como a sua, o instrumento serviria para marcar ainda mais a opção do diretor pelo fado. “Eu só não queria que fosse um homem tocando. O filme é um grito bastante feminino”, diz Carminho.
Lanthimos pediu que a própria Carminho tocasse a guitarra portuguesa. Ela, que usa o piano e guitarra clássica para compor, pediu uma semana para pensar. “Aprendi a tocar guitarra portuguesa (ou os dois acordes) por causa de Yorgos Lanthimos”, diz.
Dentro do set com Emma Stone
Carminho conta que a experiência de estar no set de Pobres Criaturas foi algo enriquecedor em termos de processo criativo, sobretudo com os níveis de detalhes em que se viu envolvida. O diretor, conta ela, sempre atento a tudo. “Quando fizemos os testes de maquiagem, de figurino, de câmera, ele acompanhou muito de perto, não apenas os atores, mas também os figurantes”, diz Carminho.
A cidade cenográfica tinha prédios, casas, animais e comida fresca. Enquanto Lanthimos usava apenas uma câmera, tudo estava vivo ao seu redor, conta Carminho. Mesmo que ele estivesse apenas em close no rosto de Emma.
No set de filmagem, Carminho teve contato mais direto com Emma, com quem contracena na cena do fado. “Ela é encantadora. Uma atriz fabulosa. É doce e generosa”, diz Carminho que teve a oportunidade de assistir à filmagem de outras sequências do longa.
Carminho diz que Lanthimos não lhe pediu nada específico no set. Explicou-lhe apenas o tempo de cena. Deveria tocar a cantar até que Bella saísse de cena.
“O mais importante é o quanto a personagem se transforma por meio do fado. É um momento em que Bella cresce. É poético como a música pode fazer isso a uma pessoa. Esse momento traz uma carga mais dramática a essa comédia”, explica a cantora.
Para ela, é importante que o fado esteja em um filme com tão grande repercussão. Sobretudo por não ser abordado de forma ostensivamente folclórica ou satirizada. “O fado não é um gênero mais conhecido, mas não passa indiferente quando as pessoas passam por ele. É como (o momento de) Cucurrucucu Paloma de Caetano Veloso (no filme Fale com Ela, de Pedro Almodóvar) que marcou gerações. É uma ideia para lá do filme”, diz.
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