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João Gilberto: após indenização milionária, discos clássicos vão chegar enfim ao streaming e lojas?

Em uma confusão digna do astro da bossa nova, a disputa envolve herdeiros, gravadora e o Opportunity. ‘Estadão’ ouviu todas as partes para chegar a uma conclusão. Relançamento nunca foi tão viável. Mas não é simples assim...

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Foto do author Danilo Casaletti

No dia 17 de outubro, os desembargadores da 14ª Câmara do Tribunal de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro homologaram o laudo pericial que calculou em R$ 150 milhões o valor da indenização que a gravadora EMI Records Brasil, atualmente pertencente à Universal Music, terá que pagar ao espólio do cantor João Gilberto (1931-2019).

O cantor João Gilberto em show no Rio de Janeiro, nos anos 2000 Foto: Wilton Junior/ Estadão

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A ação envolve os três primeiros discos de João, obras inaugurais da bossa nova - Chega de saudade (1959), O Amor, O Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961) - se arrastou por 26 anos. O cantor cobrava os royalties provenientes desses discos que, segundo ele, não são pagos a contento desde 1964, além de uma indenização por dano moral.

Na época, João também ficou enfurecido com um coletânea batizada de O Mito, lançada pela gravadora, que juntou o repertório desses três álbuns. Algumas faixas foram suprimidas. O problema maior, no entanto, foi a nova masterização. João alegou que sua voz foi alterada.

O suposto término da ação levanta uma questão relevante, relacionada não à dinheirama que a Universal terá que pagar ao espólio de João Gilberto, mas outra que, para os amantes da arte, é muito mais urgente do que qualquer disputa: os três discos que estavam no centro dessa disputa poderão, enfim, ser disponibilizados nas plataformas de streaming ou lançados em vinil com áudio revitalizado para os dias atuais?

A resposta é, assim como a bossa nova, simples e complexa ao mesmo tempo. Existe um resumo: os três primeiros álbuns de João Gilberto nunca estiveram tão perto de serem reeditados na era digital. O impacto potencial é alto, não só entre o público tradicional que venera João pelo mundo há décadas, mas entre a nova geração do pop no Brasil e no exterior, que está descobrindo a bossa nova, de Billie Eilish a Luísa Sonza.

Mas ao dissecar a resposta inicial, descobre-se que a voz direta da afirmação esconde uma teia de condições, arranjos, poréns, mistérios... Acompanhe a seguir.

A voz do pato era mesmo um desacato

O Estadão foi em busca dessa resposta. Como tudo que envolve João Gilberto, o caminho não foi tão simples. O clima de mistério em torno do músico, criado por ele mesmo, voluntariamente ou não, ainda permanece. João, um gênio da música mundial, não era dado a explicações. Assombrado por uma obsessão que podia levá-lo facilmente à irritação, deixou que mitos fossem criados a respeito de sua vida e obra. Nunca foram desfeitos. Apenas a música era capaz de compreendê-lo.

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O filho mais velho de João, o músico e produtor João Marcelo, filho de seu casamento com a cantora Astrud Gilberto (1940-2023) disse, por meio de sua mulher, a produtora cultural Adriana Hoineff, que fora instruído por seus advogados a não falar sobre o caso.

Bebel Gilberto, fruto do casamento de João com a também cantora Miucha (1937-2018), não respondeu aos questionamentos enviados à sua assessoria de imprensa. Recentemente, Bebel lançou um álbum em homenagem ao pai. Na época, em entrevista ao Estadão, disse que não podia comentar o caso em função do segredo de Justiça. “Eu queria cuidar do meu pai vivo, dar o conforto que ele merecia. Nunca estive interessada em direitos, essas coisas”, afirmou a cantora.

O advogado Leonardo Amarante, representante da filha caçula de João, Luísa Carolina, de 19 anos, aceitou falar à reportagem. Para ele, tecnicamente, não há como a gravadora Universal contestar a perícia e a indenização arbitradas pela Justiça do Rio recentemente. Segundo seu entendimento, o recurso que caberia seria no Superior Tribunal de Justiça, que não julga fatos. “Não vejo questão de direito nesse caso. Não há como contestar o valor da indenização”, explica.

João, nos tempos da bossa nova Foto: Acervo Estadão

Como o valor de R$ 150 milhões foi determinado pela justiça em fevereiro deste ano, a quantia, corrigida com juros e correção monetária, já estaria por volta de R$ 165 milhões atualmente.

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A ação só se encerra, de fato, quando a Universal cumprir a decisão da Justiça – a não ser que haja outros desdobramentos no processo - e quitar a dívida. Independente disso, Amarante acredita que o caminho já está livre para que os álbuns em disputa há quase 30 anos voltassem a circular de maneira oficial.

“Eu acredito que exista, sim, um caminho para esses lançamentos. A Luísa tem esse interesse. Estamos nessa batalha para que a obra não caia no esquecimento e que terceiros não se aproveitem dela”, diz Amarante.

A gravadora Universal Music foi procurada pelo Estadão, mas não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem sobre planos ou projeto envolvendo os discos de João e tampouco quis comentar assuntos envolvendo a ação na Justiça.

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Quando o marreco sorridente pediu para entrar também no samba

João Gilberto em show de 2003 Foto: Eduardo Nicolau/Estadão

Para além de um entendimento entre os três herdeiros e a gravadora Universal, há um quinto elemento nessa complexa trama: o gestor de recursos Opportunity. Em 2013, João, atolado em dívidas, vendeu parte dos direitos creditórios da ação sobre os royalties – o contrato é sigiloso, mas gira em torno de 40 a 60% segundo apurou o Estadão.

O cantor negociou ainda em 100% a propriedade das fitas masters dos álbuns Chega de saudade, O Amor, O Sorriso e a Flor e João Gilberto, além do compacto da trilha do filme Orfeu da Conceição. Na época, João Gilberto embolsou R$10 milhões.

O Estadão procurou o Opportunity para comentar sobre as porcentagens da ação, das fitas masters, além de questionar se o gestor de recursos tem algum projeto para relançar essas obras. Também enviou uma pergunta para esclarecer a quem caberia a autorização final para esses relançamentos.

Por meio da assessoria de imprensa, o Opportunity enviou a seguinte nota: “O Opportunity atua na defesa dos direitos de João Gilberto em processo contra a gravadora EMI/Universal Music pela falta de pagamento dos direitos autorais de obras-primas do compositor há nada menos que 50 anos. O processo ainda não acabou e o Opportunity entende que manifestações públicas a respeito do caso têm o potencial de prejudicar a estratégia processual cuidadosamente planejada”.

Para Daniel Campello, advogado de direito autoral e CEO da ORB Music, a finalização da ação, que também envolve os direitos das masters, cria a possibilidade para que os discos sejam relançados.

“Se confirmando que os direitos passam a ser do João Gilberto, eles, automaticamente, serão transferidos para o Opportunitty, que vai decidir se lança ou não esses discos. Se isso de fato ocorrer, não há necessidade da autorização da Universal”, explica.

A opinião diverge da proferida pelo advogado Leonardo Amarante, representante de Luísa Carolina. Para ele, tudo vai depender de um entendimento entre os herdeiros e o Opportunity.

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A inventariante do espólio de João Gilberto, a advogada Silvia Regina Dain Gandelman, nomeada pela Justiça, também afirma que tudo vai depender de uma negociação entre as partes. Para ela, ninguém, no momento, pode decidir se os discos serão ou não relançados. As fitas estão com a Universal, mas a gravadora não tem a disponibilidade para lançá-las.

“Está sub judice. Temos um caminho a percorrer. A negociação das fitas será objeto de conversa entre as partes. Confirmado o encerramento do processo, os herdeiros farão essa negociação ou autorização algum terceiro a fazê-lo”, explica Silvia.

A advogada admite que talvez relançar esses discos não seja o negócio pelo qual o Opportunity esteja interessado. “Nunca manifestaram esse desejo”. diz Silvia. O Opportinity terá, se paga a indenização pela gravadora, uma boa parte da quantia determinada pela Justiça.

“Existe muito material do João. E alguns inéditos. A vontade dos herdeiros é que a memória do João seja preservada da melhor maneira possível. Se houver qualidade, eles vão autorizar”, afirma Silvia.

Jogo de cena para o ganso era mato

Campello diz que é difícil estimar quanto que João Gilberto, os herdeiros, a gravadora e o Opportunity perderam ao longo desses anos em que os discos estão ausentes das plataformas de streaming.

Porém, o advogado, que tem clientes como a cantora Lucy Alves, o músico Mú Carvalho e a produtora O2 Filmes, João Gilberto gera no Spotify, com os álbuns disponíveis até o momento, cerca de US$ 100 mil por ano.

Campello diz que, no meio dessa barafunda que é o processo envolvendo royalties e propriedade sobre a obra do João, o mais importante é o fato de que João Gilberto acreditou em seus direitos quando decidiu processar a gravadora.

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“Muitos artistas se veem vilipendiados pelas gravadoras, como modificação de discos, contratos que não contemplam a exploração digital e prestação de contas ridículas, e não fazem nada para mudar isso”, diz.

“João, com seu ouvido absoluto, percebeu que seus discos foram mixados de forma diferente e foi brigar na Justiça. Isso devia estimular outros artistas brasileiros a fazer o mesmo. Uma pena que ele não tenha recebido isso em vida. Foi uma briga que se tornou muito grande porque João é muito grande”, completa Campello.

Não há outro caso como o de João Gilberto na música brasileira. A exceção é Gilberto Gil que, nos anos 1990, conseguiu retomar os direitos sobre quatro músicas em uma disputa com a gravadora BMG Arabella. Os casos mais comuns são disputas com as editoras musicais, que administram os direitos autorais de uma obra fonográfica.

O lançamento mais recente de João Gilberto ocorreu neste ano, pelo Selo Sesc 

No exterior a situação é diferente. Com contratos confusos – isso ocorre com todos os artistas – as filiais das gravadoras exploram as obras muitas vezes à revelia dos artistas. É possível encontrar esses mesmos discos de João Gilberto alvos de disputas em edições em CD e vinil.

De forma oficial, os últimos lançamentos oficiais de João foram o álbum João Gilberto – Ao Vivo no Sesc, lançado no Brasil pelo Selo Sesc neste anos, e o blu-ray João Gilberto – Live in Tokyo, disponibilizado no Japão. O primeiro foi autorizado pelo espólio do cantor. O segundo, provavelmente é fruto de um autorização do próprio João, ainda quando estava vivo.

Recentemente, outros dois lançamentos, talvez não oficiais, chegaram às plataformas: Ao Vivo No Teatro Santa Isabel (2022) e Ao Vivo em Buenos Aires (2023). A advogada Silvia Regina Dain Gandelman diz desconhecer esses produtos. “Nenhuma autorização passou por mim. A não ser que tivesse uma autorização prévia. O que duvido, pois o Spotify é uma mídia nova (posterior às gravações)”, diz.

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