Chan Marshall, conhecida pelo nome Cat Power, volta ao Brasil neste mês. A cantora se apresenta no dia 19 de maio no festival C6 Fest – desta vez, cantando Bob Dylan.
Com nome consolidado há pelo menos duas décadas, Cat é uma artista firme e sensível. Uma compositora, sim, mas também uma autêntica intérprete: discos como The Covers Record (2000) a solidificaram como alguém com cacife para cantar músicas de outros artistas. A trajetória de Chan sempre teve muito de referência e interpretação, mas agora, deságua inteiramente em um ídolo. Ninguém menos que Dylan, um dos nomes mais ímpares da música norte-americana.
Em 2023, inspirada por uma apresentação emblemática de seu ídolo, a cantora lançou o álbum ao vivo Cat Power Sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert. Revisitar o repertório de Dylan de 1966 se tornou uma turnê - e é esse show especial que a artista trará ao Brasil, no domingo, 19.
Sobre esse seu momento de carreira, Chan tem muitas histórias para contar. Em entrevista ao Estadão, ela relembra sua relação com Bob Dylan e reflete sobre Brasil, música e juventude. Veja:
Para Chan, Bob Dylan é ‘verdadeiramente punk rock’
Nascida em 1972, em Atlanta, Chan aprendeu desde cedo sobre música e liberdade. A casa dos seus pais se encaixa naquele imaginário dos Estados Unidos nos anos 70: um clima caótico, psicodélico e culturalmente fértil. “Eu estava sempre com muitos adultos e ouvindo muitas bandas. O nome da minha mãe era Ziggy. Ela mudou de nome porque gostava de David Bowie. Foi muita loucura e selvageria”, brinca.
Dessas influências, Dylan se destacou para Chan porque não era uma unanimidade. “Uma das coisas que notei foi que sempre que Bob Dylan tocava, as pessoas tinham tantas coisas para dizer sobre ele. Era controverso. Todas as pessoas tinham sentimentos fortes com relação a Bob”, conta.
“Essas pessoas discutiam se ele era bom ou não e isso me ensinou a gostar. Comecei a prestar atenção nele porque suas letras eram tão… quase como uma brincadeira. Como um enigma”.
Aos poucos, Dylan se tornou uma constante na vida e nos ouvidos de Chan até que, em 2007, ela o encontrou pessoalmente. A máxima “Não conheça os seus ídolos” não se aplicou a ela. “Eu o vi pessoalmente em 2007 e até antes de gravar [Cat Sings Dylan]. Os shows, eu já vi um milhão de vezes desde os 16, 15 ou 16 anos. Isso me deu uma injeção de ânimo para continuar a entregar o presente que é a música dele”, conta.
Em especial, Chan tem um vínculo com a gravação conhecida como Bob Dylan Live 1966, The “Royal Albert Hall” Concert. A notória apresentação, de maio de 1966, leva o nome errado - na verdade, o show aconteceu no Manchester Free Trade Hall, e gravações pirata confundiram o local. Mas o nome pegou.
Desta vez, Cat quis levar o show ao verdadeiro Royal Albert Hall. “Quando eu soube que faria o show lá, meu primeiro pensamento foi: ‘Eu quero fazer esse disco’”.
Afinal, relembra ela, “eles tiveram que inventar o punk rock naquela turnê”. “Bob estava realmente protestando, ou vindo de protestar contra o canto folclórico, e ele desafiando o público. Ele foi vaiado, eles foram vaiados, eles foram destruídos na mídia e pela crítica por ir para a música elétrica”, diz.
“Quando um artista pode continuar a fazer o seu trabalho frente à adversidade, isso é verdadeiramente punk rock”, completa. Para Cat, era importante “entregar o álbum ao mundo”, reapresentando uma parte do trabalho de Bob Dylan à juventude.
“Espero que talvez os mais jovens possam aprender sobre Dylan e perder esse medo de arriscar. Porque são os jovens que criam a revolução”, declara. “O mundo... tudo está tão bagunçado. Precisávamos de [Dylan]”.
Como resultado, Cat Sings Dylan ‘66 é um tributo contemporâneo à rebeldia do músico. Os arranjos são fiéis às canções originais, deixando boa parte da inventividade para a característica voz de Chan. “Eu queria entregar as músicas lindamente, com uma elegância, talvez como Bob quisesse que fosse. Com graça e dignidade”, diz.
O Brasil de Chan: Caetano Veloso, feijoada e Alice Braga
Com direito a Mr. Tambourine Man e Like a Rolling Stone, Chan está animada para trazer o repertório de “God Dylan” ao Brasil. Ela se apresenta no segundo dia do festival, pouco antes da banda Pavement. “Uau, nós vamos festejar como nos anos 90″, brinca.
Na verdade, ela já tem uma relação com o País - de outros carnavais. Além de já ter se apresentado por aqui várias vezes, Chan já até cogitou se mudar para o Rio de Janeiro. Para ela, o Brasil tem uma característica especial. “É poderoso. Toda a vida que vem do Brasil. A medicina da Amazônia. A música. Caetano Veloso. Seu jeito de tocar violão...”, lembra. “A comida, a energia das pessoas”.
E tem uma memória preferida: “Meu Deus, a primeira vez que coloquei feijoada na boca e pensei: ‘Estou na casa da minha avó. Minha avó está cozinhando isso na cozinha.’”
Chan pretende reviver essa energia e mergulhar no Brasil. Aliás, seus planos por aqui incluem até um jantar com a atriz Alice Braga. “Eu a conheci pelas redes sociais, acho que nunca a vi pessoalmente. Mas eu vi o trabalho dela e queremos conversar sobre as coisas”, diz.
‘Eu precisava passar pelo meu passado’
Entre jantares, turnês e versões, Chan está a pleno vapor. Além do tributo a Dylan, ela já prepara seu novo álbum autoral, intitulado Opus. Mas segundo ela, tudo ainda é um processo de aprendizado. “Levo muito a sério ser atravessada pela arte, pela música. Quando eu gosto, eu entro naquilo. Não dominei nada. Ainda estou aprendendo”.
Ela é verdadeiramente punk rock: artista e mãe de 52 anos, Chan já teve que atravessar questões de vício e saúde mental. Para ela, faz parte do processo. “Estou tão feliz com minhas escolhas, mas às vezes sou teimosa. Precisava passar pelo meu passado, eu precisava aprender a maneira mais difícil de ser eu”, reflete.
“E ser mulher, sabe, essa é a grande coisa. Esse era um mundo de homens e não é mais, nós recusamos isso agora. E não precisamos confiar no reconhecimento ou na aceitação do mundo de um homem”, diz.
A voz de uma mulher dá outro tom às canções? Para Chan, sim. “[Quando uma mulher interpreta a música, fica com] maior compaixão, mais tradução. Quando Nina Simone fez um cover de Wild is the Wind, de David Bowie, fiquei atordoada. Com a ressonância da voz dela aprendi algo que não aprendi ouvindo David Bowie. E é por isso que adoro covers, porque eles podem profundamente mover e mudar a maneira como nos sentimos. Isso é um presente”.
Afinal, Cat Power sabe o valor que sua voz tem. “Ser capaz de cantar como uma mãe solteira de 52 anos, sabe... Eu vim de uma família sem dinheiro, sem nada. São linhagens mistas dos nativos Cherokee, de alemães, judeus, negros, irlandeses. Então, com toda essa turbulência, sinto que estou carregando uma herança em mim”, conclui.
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