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Maria Callas: nos 100 anos de seu nascimento, entenda por que ela foi a diva definitiva da ópera

Callas completaria 100 anos em 2 de dezembro; ela e sua carreira relâmpago permanecem como faróis de integridade e profundidade artística

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Por Zachary Woolfe

THE NEW YORK TIMES - A voz dela é a sombra que fica depois do choque, depois da raiva: o som de uma mulher percebendo que não tem mais nada pelo que viver.

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É o segundo ato da ópera La Traviata, de Verdi. Violetta e Alfredo, uma prostituta e um jovem rico, apaixonaram-se perdidamente. Mas o pai dele a confronta, exigindo que ela abandone o caso vergonhoso para salvar as perspectivas de casamento da irmã de Alfredo.

Para Violetta é um sacrifício insuportável, mas ela o fará. “Dite alla giovine”, ela canta, num murmúrio entrecortado: Diga à sua filha que abandonarei a única coisa boa que tenho, para o bem dela.

Cantando essa passagem em 28 de maio de 1955, no Teatro alla Scala de Milão, a soprano Maria Callas chegou à frase sobre como a irmã de Alfredo é “bella e pura” e inseriu um leve suspiro antes de “pura”.

É um silêncio quase imperceptível, mas dentro dele há um buraco negro de resignação. A pausa de uma fração de segundo sugere dolorosamente que Violetta sabe que, se ela também fosse pura, sua felicidade não seria dispensável.

Cantora de ópera Maria Callas (centro) dá autógrafos para fãs após último recital dela no Theatre des Champs Elysees, em Paris, em 7 de dezembro de 1973 Foto: Arquivo/AFP

Pequenos detalhes como este mostram como Callas – que completaria 100 anos em 2 de dezembro – deu aos melodramas da ópera um surpreendente senso de realidade e a suas personagens a profundidade psicológica e as nuances de pessoas reais. Pequenos detalhes como este, capturados em centenas de gravações, mostram como a mais mítica das cantoras resistiu obstinadamente a cair no mito.

Diva definidora do século 20, Callas não está tão longe de nós em alguns aspectos; uma duração de vida normal a teria levado até o 21. Essas muitas gravações – infinitamente remasterizadas, reembaladas e relançadas – a mantiveram nos nossos ouvidos, referência do que é possível na ópera, musical e emocionalmente.

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Sua arte dramática e sua vida dramática, muitas vezes entrelaçadas, fizeram dela uma pedra de toque cultural: um olhar glamouroso em anúncios da Apple e uma inspiração para peças de teatro (entre elas uma vencedora do Prêmio Tony), performances de Marina Abramovic (ruim) e Monica Bellucci (pior), em breve um filme estrelado por Angelina Jolie (veremos) e até mesmo uma turnê de holograma (suspiros).

Maria Callas (à frente) e a mezzo-soprano italiana Giulietta Simionato na 'Paris Opera House', em 23 de maio de 1964, atuam na ópera 'Norma' de Bellini Foto: Arquivo/AFP

Mas Callas também pode parecer uma figura de uma história distante. Sua morte solitária ocorreu em 1977, quando ela tinha apenas 53 anos – e, naquela época, seus dias de verdadeira glória artística já estavam 20 anos no passado. O número de pessoas que a viram ao vivo, especialmente em óperas encenadas, está diminuindo, e muito pouco foi filmado de sua breve carreira.

E assim tem sido há décadas, para a maioria de nós: Callas como uma criação de imagens estáticas e áudio. Temos de usar essas ferramentas para imaginar como eram suas performances, para completá-las.

Mas quando você a ouve, é algo surpreendentemente fácil. Você ouve aquele “Dite alla giovine” e de imediato vê, na sua voz, o vazio de seu rosto, a boca quase sem se mover, a rendição, os ombros caídos. No final de sua clássica gravação de Tosca (1953), você consegue “ver” de novo aquele rosto indelével, desta vez passando da euforia silenciosa para perda catastrófica em segundos. (Ouça o medo repentino naquele segundo grito de “Mario!”) Com Callas, o auditivo sempre pressiona o visual: a voz, com sua especificidade e pungência, com sua vitalidade estranhamente assombrada pela morte, faz você imaginar o corpo dela se movendo no espaço.

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Nas suas apresentações, nunca houve uma ideia de ópera como mero entretenimento, uma noitada com música bonita. Ela levava cada nota a sério, enquanto outras camuflavam e desviavam; ela era refinada onde outras eram vulgares. Na sua voz poderosamente expressiva e na sua presença magnética, a ópera realmente importava.

Assista-a interpretar Tu che le vanità de Don Carlo, de Verdi no concerto de 1962, perto do fim da carreira. [Vídeo na abertura deste texto] Você se dá conta, mesmo antes de ela abrir a boca, dos paradoxos fundadores da ópera. Ela é grandiosa e franca, épica e íntima.

A ópera na era moderna é, em essência, uma exumação do passado, um renascimento literal. Callas é a cantora essencial – ela é ópera – não por causa de seu instrumento ou de sua atuação, mas porque, com uma combinação de intuição inata e habilidade cuidadosamente adquirida, ela imaginou e reconstruiu um mundo desaparecido.

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Ela assumiu todo um repertório – o bel canto do início do século 19, nomeadamente óperas de Gaetano Donizetti, Vincenzo Bellini e Gioachino Rossini – que tinha sido ignorado ou distorcido por gerações. E interpretou peças que nunca haviam se afastado do público – como La Traviata, Lucia di Lammermoor, de Donizetti, e Norma, de Bellini – como se estivessem sendo feitas pela primeira vez.

A personagem-título de Lucia, então considerada uma alegre, era na garganta de Callas uma heroína gótica, mórbida e extasiada – mais intensa e mais crível. Depois da Segunda Guerra Mundial, ela mostrou que o patrimônio da Europa poderia emergir dos escombros.

Nascida em Nova York, filha de imigrantes gregos, Callas cresceu ouvindo programas de rádio do Metropolitan Opera e, aos 13 anos, voltou com a mãe para a Grécia. Um ano depois, ela já cantava Habanera de Carmen e Casta diva” de Norma quando era estudante do conservatório em Atenas.

Ela não fez papéis coadjuvantes, nem contou com programas para jovens artistas. Aos vinte anos, cantava alguns dos papéis mais desafiadores do repertório; aos trinta e poucos, já se apresentava no mundo todo.

Sessenta anos depois de Callas cantar Medea, a estrela de uma nova produção no Met em 2021 disse que o legado de Callas não deixou de ser o “elefante na sala”. A opera ainda faz a pergunta que o escritor Ethan Mordden lembra ter sido feita por um amigo em 1969: “Existe vida depois de Callas?”

Deveria existir? Ela e seu lampejo de carreira continuam sendo um farol de integridade e profundidade artística – do cultivo da tradição e do ofício, de um desejo de fazer com que o passado influencie o presente – numa cultura que valoriza cada vez menos essas qualidades.

O figurinista Piero Tosi estava lá para sua grande Traviata no La Scala em 1955. “Nem parecia que ela estava cantando”, disse ele sobre seu “Dite alla giovine”. “Mesmo assim, todo mundo ouviu”.

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Impossivelmente distante, mas imensamente presente: no seu centenário, Callas ainda é o sol no céu da ópera.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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