Chico Buarque e o grupo MPB4 ganham o terceiro lugar no Festival de Música Popular Brasileira de 1967 com a canção "Roda Viva", em cerimônia realizada na capital paulista. São Paulo, SP. 30/12/1967. Foto: Acervo Estadão
Foto: Acervo Estadão

Como as músicas de Chico Buarque ajudam a contar a história do Brasil

Músicas como ‘Apesar de Você’, ‘Acorda, Amor’, ‘Cálice’ e ‘As Caravanas’ refletem momentos cruciais da sociedade brasileira

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Foto do author Danilo Casaletti
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Ao celebrar os 80 anos de Chico Buarque nesta quarta-feira, 19 de junho, um esforço de imaginação pode ser válido: o que seria de Chico se, em 1965, ele não tivesse cedido aos apelos do produtor Manoel Barenbein para que gravasse um punhado de boas músicas que ele já tinha feito até então e que circulavam apenas entre os botecos que eles e parceiros como Toquinho costumavam frequentar. Naquela altura, Chico queria dar vazão às suas criações, mas não queria jamais que isso ocorresse na sua voz.

O cantor Chico Buarque: 80 anos de vida e 60 de carreira Foto: Pedro Kirilos

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Certamente, seria Chico, atualmente, genial, mas menos popular, como outros compositores-escritores e pensadores da cultura brasileira, caso de Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc (1946-2020). Para o bem geral do sanatório geral, Chico cedeu. Seu disco de estreia - o que tem na capa sua imagem triste e alegre, transformadas em irresistíveis memes décadas depois - traz o cerce no que seria sua obra musical nas seis décadas seguintes.

Filho do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, autor do clássico Raízes do Brasil, e da pianista e intelectual Maria Amélia Cesário Alvim, Chico, fruto artístico direto da bossa nova, miraria sua caneta e as cordas de seu violão para temas sociais e canções de amor. Era que passava pela sala da família de classe média da qual ainda saíram outras três cantoras: Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Holanda.

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A primeira grande exposição, o que Chico justamente fugia até ser convencido a se tornar também um cantor, chegou com A Banda, a marcha que ele compôs para Nara Leão e que foi a vencedora do II Festival de Música Popular Brasileira. Tanto Chico quanto Nara, trataram logo de virar a página e fugir de qualquer armadilha que os histéricos auditórios dos festivais sugeriam - e para os quais Chico se tornou um ídolo. Nara, aliás, chutando para longe a ideia de ‘musa da bossa nova’, foi a primeira grande intérprete de Chico. Em seguida, viriam Maria Bethânia e Elis Regina.

A partir de 1968, com o endurecimento da censura imposta pela ditadura militar, o Chico ‘político’, como muitos preferem chamá-lo, se inspirou no poeta Gonçalves Dias para fazer a letra de Sabiá, para uma melodia escrita por Tom Jobim. Espécie de Canção do Exílio, a música recebeu uma injusta e tremenda vaia ao ser a vencedora do III Festival Internacional da Canção, da TV Globo.

O público queria Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando), de Geraldo Vandré. Tempos duros, de mensagens cifradas, mas necessariamente claras. Cinema Novo, Tropicália, O Pasquim… e Chico a traduzir tudo em versos como “a calma dos lagos zangou-se/ a rosa-dos-ventos fartou-se/e inundou a água doce” (Rosa dos Ventos, 1970).

O outro lado também mandava recados explícitos. O governo militar prendeu Caetano Veloso e Gilberto Gil, sob uma obscura acusação de ‘deboche da pátria’. Acompanhado pela mulher, a atriz Marieta Severo, grávida de Sílvia, Chico decidiu ir para a Europa e firmar um autoexílio em Roma. Foram 14 meses fora, até a volta, em março de 1970.

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No retorno ao País, Chico, que não vendia discos, assim como muitos de seus parceiros da MPB, grava o LP Construção, seu primeiro álbum com sucesso de vendas. Antes do bolachão, lançou um compacto com o provocador samba Apesar de Você, que havia passado incólume da canetada dos nem sempre inteligentes censores. Não por muito tempo: o disquinho, que do outro lado trazia Desalento, teve de ser recolhido e Apesar de Você só seria liberada para o disco de 1978, o da samambaia.

Para driblar a censura, Chico, como os grandes poetas, criou pseudônimos como Julinho de Adelaide e Leonel Paiva para assinar suas músicas. Uma delas, Acorda Amor, incluída no álbum Sinal Fechado, de 1974, sugeria que a personagens da histórias, assustados com a polícia que batia na portão, chamassem os ladrões em busca de proteção.

Chico Buarque desembarca no Rio em 20/3/1970, após autoexílio na Itália. Foto: Acervo/ Estadão

Um ano antes, Chico fora proibido de cantar Cálice, música em parceria com Gilberto Gil, no palco do festival Phono 73. Os censores invadiram a sala em que técnicos da gravadora registravam o show e exigiram que os microfones fossem desligados. Por esperteza de quem pilotava a gravação, apenas o som para o público foi cortado e o registro de uma sufocante tentativa de Chico e Gil se expressarem livremente ficou eternizada.

Na década seguinte, e depois da adesão de Gal Costa ao seu trabalho, Chico se tornou cada vez mais popular. O ápice dessa fase está no programa mensal Chico & Caetano, exibido pela TV Globo entre abril e dezembro de 1986. Na atração, os dois recebiam convidados no palco. Passaram por lá nomes consagrados como Tom Jobim, Elizeth Cardoso, Astor Piazzolla, Mercedes Sosa e Pablo Milanés, além de uma nova geração do pop/rock simbolizada por Os Paralamas do Sucesso, Renato Russo, Luiz Caldas e Cazuza.

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Os músicos Tom Jobim e Chico Buarque de Holanda durante concerto musical em São Paulo, em 1990 Foto: Fernando Arellano/ Estadão

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Se a abertura política proporcionou a liberdade de expressão para Chico, também trouxe eleições diretas e, com elas, Chico virou a cara para a televisão, sobretudo após o grande embate Fernando Collor versus Lula, no primeiro grande pleito pós-redemocratização.

Chico, então, se tornou mais arredio à mídia. Entretanto, em um país ligado à TV, se tornou popular ao lançar Paratodos e ao ser tema de um desfile da Mangueira, em 1998. Voltou-se para a literatura ao lançar romances como Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014) e Essa Gente (2019).

Com a dedicação aos livros, e as temporadas em Paris, espaçou a produção musical, não sem colocar na praça grandes canções como Ode aos Ratos, Dura na Queda, Sinhá e A Moça dos Sonhos. Sai o sucesso nas rádios e a disputa pelos grandes intérpretes - embora Bethânia lhe tenha sido sempre fiel - e entra um cristalização da obra, sempre alta qualidade.

Em 2017, depois de um hiato de seis anos sem canções inéditas - nesse meio tempo, ele lançou o livro O Irmão Alemão - Chico volta com o álbum Caravanas. O destaque é a música As Caravanas, com letra que toca em questões sociais que escancara o proconceito das classes A e B aos jovens negros do subúrbio que se misturam em um território ainda democrático: as praias.

A gravação traz um beatbox feito por Rafael Mike, integrante do grupo carioca de funk Dream Team do Passinho, que reforça onde Chico queria chegar com a composição. Dentro da gaveta da dita MPB, na qual Chico está inserido desde o início de sua carreira, As Caravanas é uma das melhores músicas feitas nos anos 2000.

Monica Salmaso e Chico Buarque cantam juntos na turnê 'Que Tal um Samba?' Foto: Pedro Kirilos

Em 2023, quando saiu em uma disputada - e, provavelmente, a última - turnê pelo País ao lado da cantora Mônica Salmaso, Chico lançou apenas um single: o samba, meio Rio, meio Havana, batizado de Que Tal Um Samba?, com letra também conectada com questões políticas e sociais. As Caravanas e Que Tal Um Samba derrubaram por terra a máxima de que Chico e outros compositores de sua época precisavam da censura em seus pés para serem criativos.

Chico, o cara que não queria cantar, ao decidir fazê-lo, amplificou seu pensamento e traduziu o Brasil ao longo dos anos, não só na música, mas também no teatro, na dança e na literatura. Em tempos de polarização e cancelamento, Chico padeceu, mais uma vez, do ‘ame-o ou deixe-o’, mas sem jamais perder a majestade que ele jamais quis ostentar.

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