Em Vida, canção que gravou em 1980, Chico Buarque, na pele de um personagem perto de seus últimos dias, faz um balanço doce-amargo, mas se agarra na existência. “Luz, quero luz”, canta/escreve, parafraseando as famosas últimas palavras de Goethe (“luz, mais luz”).
No aniversário de 80 anos do cantor e compositor carioca nascido em São Paulo, dois livros iluminam, de formas diferentes e algo complementares, a longa jornada do artista.
O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá (L&PM Editores), do gaúcho Márcio Pinheiro, autor do obrigatório Rato de Redação: Sig e a História do Pasquim, analisa, a partir do conflito entre criador e ditadura, a obra e a trajetória de Chico. Com contextualização histórica e política rigorosa, avança Nova República adiante (afinal, a censura havia permanecido, como um dos chamados “entulhos autoritários” deixados pelo regime militar) e acompanha o artista até os dias atuais, descrevendo os quadros do apartamento onde ele vive hoje, com a mulher, Carol Proner, no Leblon, no Rio de Janeiro, seus hábitos de caminhada e preferências de leitura.
É um trabalho de amor, reverente, mas nem tanto, ao gênio prolífico da música popular que foi se transformando, nas últimas décadas, em “artesão paciente”, que sabe que “nada é pra já”. No prefácio, o jornalista Eric Nepomuceno, amigo de Chico há 60 anos, avisa que o compositor “não gosta de falar daquele tempo de breu”. “Mas, se por acaso ler este livro, certamente ficará espantado com a reconstrução feita em detalhes daqueles tempos de pesadelo, fúria e dor”, completa.
Trocando em Miúdos — Seis Vezes Chico (Record), com a pena afiada do jornalista Tom Cardoso, compartimenta o artista, sempre indissociável do ser humano, nos seguintes temas: política, literatura, fama, polêmicas, censura (e autocensura) e futebol.
Com esmero de pesquisador e esforço de repórter, entrevistando fontes como Ana de Hollanda (irmã) e Sílvia Buarque (filha), Tom perfila um Chico plural, diferente do personagem clichê que certas reduções políticas ou pseudo-históricas costumam moldar.
Há o gênio low profile, suposto introvertido, que se transforma em craque fanfarrão e dono do time nas peladas, paixão cultivada com fidelidade maior que na maioria das relações românticas.
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Também temos o artista sensível, homem dócil e diplomático, que, devidamente embriagado, foi capaz de interpelar e dar cusparadas na cara do desafeto Millôr Fernandes no restaurante Antonio’s, no Leblon, em cena carioca dos anos 1970 narrada pelo cartunista Jaguar. “O Millôr jogou o saleiro, o serviço, todas as coisas que estavam na mesa, só faltou jogar a Cora Ronai (sua companheira). Errou”, detalha.
Também é lembrado o galã e ídolo elegante que, ao comentar fala de Erasmo Carlos, desdenhou: “Tem outro que falou que teve mil mulheres. Eu digo: ‘Bom, mas, então, não foi bom nunca, para comer mil’... Não acho vantagem”.
Sem se deter na análise da obra (musical, literária e teatral), o texto esmiúça motivos e elementos para o que hoje se definiria como seu “ranço” em relação a Elis Regina. Também serve elucubrações sobre canções compostas a partir do episódio de tabloide que Chico viveu em 2005, ao ser flagrado na praia do Leblon em amassos pouco inocentes com uma mulher casada.
Sempre saboroso, Trocando em Miúdos é historicamente elucidativo ao listar as alfinetadas (mais para cotoveladas verbais) trocadas com os tropicalistas.
Foi uma treta nem sempre aberta, mas que desde o fim dos anos 1960 gerou competitividade positiva entre patotas da MPB, até o grande armistício televisionado pela Globo, entre duetos e sorrisos odara, na antológica série de programas Chico e Caetano, de 1986.
O momento mais agudo dessa rivalidade também está descrito: uma vaia ouvida quando Chico cantava Bom Tempo, na Bienal do Samba, organizada pela TV Record, em 1968. Supostamente arquitetada por Gilberto Gil, ela foi explicada posteriormente como uma tentativa de calar um protesto dos próprios tropicalistas, que tinham sido excluídos do festival. Desculpa aceita anos depois: a partir disso, Chico e Gil seriam apenas abraços daqueles — e parcerias como Cálice.
A parte política examina o mau passo do passado quando, adolescente semi-imberbe, Chico foi aliciado por um professor do colégio paulistano Santa Cruz para se juntar ao movimento ultramontano, uma corrente católica hiperconservadora.
Ao mesmo tempo, o capítulo lembra que, em reação às patrulhas de “companheiros” esquerdistas — que reclamavam do otimismo de canções como Bom Tempo e cobravam letras contundentes — quase decidiu faltar à Passeata dos Cem Mil, no centro do Rio, em junho de 1968. Mas não deixa de citar que, cinco dias após o AI-5, Chico foi conduzido a um quartel do Exército e ouviu de um coronel que esperava ansioso pelo dia em que “pudesse enfiar um ferro quente na vagina da sua amiga Nara Leão”. Duas semanas depois, partiu para o exílio.
Tom acompanha idas e vindas nas relações com os governos Geisel e Figueiredo (incluindo perseguições e ao menos uma tentativa de distensão), e narra os afagos a Fernando Henrique Cardoso, para quem compôs o jingle da candidatura ao Senado, em 1978, e, para desgosto dos amigos petistas, adaptou Vai Passar para a campanha à prefeitura de São Paulo em 1985. FHC foi derrotado nas duas ocasiões, mas só perderia a admiração de Chico — para sempre — após a aprovação da reeleição presidencial, em janeiro de 1997.
Chico Buarque e a censura
Com bom jornalismo, Tom deixa claro que Chico fez críticas e jamais se alinhou automaticamente aos dois primeiros governos Lula. E expõe, a partir de depoimento de sua irmã, Ana de Hollanda, a violenta perseguição sofrida quando ministra da Cultura do primeiro mandato de Dilma Rousseff.
Mas, obviamente, registra também as ofensas e os ataques sofridos pelo próprio Chico, no clima de ódio à cultura insuflado pelo bolsonarismo.
Na parte sobre literatura, são descritas tretas, acusações de plágio, a recusa “hereditária” à Academia Brasileira de Letras, e o apoio de um “coach” de renome, Rubem Fonseca. E são listadas as paixões que influenciaram Chico como leitor, começando pela maior, Guimarães Rosa, mas sem deixar de citar o supermaldito francês Louis Ferdinand Céline (1894-1961), cuja obra genial sempre foi turvada por sua postura durante a ocupação nazista e pelos panfletos antissemitas que escreveu.
No capítulo sobre “censura e autocensura”, o livro de Tom Cardoso pisa em terrenos não mapeados na obra de Márcio, como as recentes revisões históricas e o impacto da cultura woke no trabalho do compositor. Mas “O que não tem censura nem nunca terá” ganha em profundidade e detalhamento.
Ao acompanhar as trombadas com a censura, iniciadas em 1966, quando Chico tinha apenas 22 anos e, já velho conhecido da mídia, teve a inocente música Tamandaré proibida por desrespeitar o patrono da Marinha, o livro de Márcio Pinheiro ganha fôlego de biografia. Com uma particularidade: nela, personagens como Edgar Façanha, chefe do chamado Serviço de Censura, e seu funcionário Washington Vaz de Melo, aparecem como coadjuvantes bicões.
Um certo censor, Mário Russomanno, chamou Chico de “débil mental” por ter escrito Roda Viva, segundo ele, uma peça “que não respeita a formação moral do espectador”.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Chico reagiu: “Eu assumo totalmente a responsabilidade pelo espetáculo. Era justamente aquilo que eu queria dizer. [...] Eu nunca disse a ninguém que era bonzinho, eles é que criaram essa imagem”.
Márcio recapitula detalhadamente o clima pesado em 1968, lembrando lances pouco citados na repressão artística. Por causa de ameaças ao elenco, Roda Viva teve cancelada sua temporada em Porto Alegre logo após a estreia.
Apesar de você
Entre dribles e desafios, em pleno 1970 de chumbo, Chico conseguiu uma jogada de efeito ao emplacar Apesar de você nas fuças dos generais e de seus inimigos da censura. Chegou em 20 de março, fazendo estardalhaço na mídia, conforme conselho do amigo Vinicius de Moraes, para evitar prisão ou ação violenta por parte da ditadura. Aos 25 anos, Chico Buarque já era Chico Buarque.
Gravou e lançou a música em compacto simples, com Desalento no lado B, dando seu recado político esfarrapadamente disfarçado de recalque amoroso. Fez shows com o MPB4 na Sucata, boate de Ricardo Amaral na Lagoa, no Rio de Janeiro, gravou especiais de TV e se mandou dias após o tricampeonato do Brasil no México, ainda em junho. Tinha discos a gravar, por contrato, em Roma.
Apesar De Você embalou comemorações futebolísticas, grudou, empolgou, tocou no rádio e vendeu bem. Até que, em fevereiro de 1971, uma inocente menção em texto de Sebastião Nery para a Tribuna da Imprensa (em que dizia que seu filhos e os colegas dele cantavam Apesar de Você como se fosse o hino nacional) fez cair a ficha para a censura.
Elizeth Cardoso foi a primeira vítima, advertida para não incluir a música no show que fazia no Canecão. Depois, deu Exército na fábrica da gravadora Phillips, no Alto da Boa Vista, recolhimento do disco em todas as lojas, até o censor que havia papado a mosca inicialmente foi punido. E o samba, que a essa altura já havia sido regravado por Clara Nunes, passou sete anos proibidão.
Os maiores tesouros do livro de Márcio Pinheiro surgem quando disseca a década de 1970, a mais importante da carreira de Chico, quando a censura, de uma forma ou de outra, acaba moldando ou direcionando sua obra. Cálice, Calabar, Chico Canta, Construção, Ópera do Malandro (liberada após um apelo do produtor Sérgio Brito e de um poderoso censor chamado Humberto Barreto, mais um coadjuvante de peso na história).
Sem spoilers, a tabelinha indesejada segue anos 1980 adiante, já adentrando pautas de costumes, patrulhas ideológicas e mesmo uma ameaça de rusga com velhos aliados do jornalismo musical (em um programa Canal Livre, de 1981, Chico comparou a crítica à censura. A polêmica, porém, teve voo curto).
Recluso, avesso a entrevistas, mas com liberdade de expressão, Chico passou um longo período sem maiores conflitos com censura e repressão. Mas a era das fake news e o ódio insuflado pelas redes bateu à sua porta. Em novembro de 2022, ele precisou se defender da esdrúxula exigência de uma juíza fluminense, que veio lhe cobrar provas da autoria da música Roda Viva. A luz ainda é necessária.
O que Não tem Censura nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar
- Autor: Márcio Pinheiro
- Editora (L&PM, 224 págs.; R$ 59,90)
Trocando em miúdos: Seis Vezes Chico
- Autor: Tom Cardoso
- Editora: Record (270 págs.; R$ 79,80
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