RIO - É o cara da guitarra quem mais se assemelha fisicamente a Tim Maia. Aquele Tim do começo da carreira, com cabelo black power e bigodinho peculiar. Para além do hipotético jogo cênico, mero acaso, é ele quem dá envergadura ao show-tributo ao soulman, que já passou por Brasília, Fortaleza, Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro e chega a São Paulo neste domingo, 28, na praça Heróis da FEB. Em sua quarta edição, o projeto batizado de Viva é promovido pela empresa de cosméticos Nivea e já homenageou Tom Jobim (por Vanessa da Mata), Elis Regina (por Maria Rita) e o samba (por Martinho da Vila, Alcione, Diogo Nogueira e Roberta Sá).
Na comissão de frente, está a improvável dupla Criolo e Ivete Sangalo, mas são nas cordas eletrificadas de Duani que o groove do Síndico pulsa mais forte. Entre solos vertiginosos, bases invocadas e comentários de acento jazzístico, ele não só rouba a cena para si, como evita que o produto final soe pastiche. Até porque o desafio não é dos menores: resgatar uma obra consagrada e dar a ela algum frescor. Por isso, Daniel Ganjaman está à frente da produção e arregimentou uma numerosa banda, capaz de responder por este mix de sofisticação e consistência sonora. O próprio Ganja está no palco e surpreende pela sua interpretação vocal, requisitada em alguns temas.
A base do repertório está na década de 1970, contemplando os clássicos (Azul da Cor do Mar, Gostava Tanto de Você, Sossego, Chocolate, Primavera, Você, Não Quero Dinheiro) e a fase Racional (Imunização Racional e Bom Senso). Dos 1980, Sullivan e Massadas ganham atenção especial, com Leva, Me Dê Motivo e Um Dia de Domingo. Sempre respeitosa, a leitura musical nunca extrapola os arranjos originais e abre pouco espaço para divagações. Não há como não lembrar, por exemplo, dos Racionais MCs quando Ela Partiu vem entoada por Criolo. A música, que serviu de base para Um Homem na Estrada, obra-prima do grupo paulistano, não é mencionada, mas bem que poderia. Em São Paulo, terra do rap, o ambiente é perfeito.
O ponto alto do roteiro, ao menos neste quesito inventividade, vem com a sessão nordestina, quando a proposta de Tim de unir soul, rock e baião vira uma verdadeira panela de pressão. Jack White ficaria boquiaberto se ouvisse essa versão hipnotizante de Coroné Antonio Bento. Duani, mais uma vez, “é o cara”.
No comando da celebração, Criolo e Ivete mais se alternam em momentos solos do que cantam juntos no palco. Ivete, naturalmente, com o lado mais festivo da obra do homenageado; e Criolo, de mansinho, à frente das baladas. É uma dinâmica que valoriza a extensão e potência vocal de cada um. Ninguém está fora de sua zona de conforto. Sempre coreográfica e desejosa por interação, Ivete se mostra contida até, ao menos diante daquilo que conhecemos de suas performances. Já Criolo afasta qualquer postura assertiva, que o rap de alguma maneira sempre pede, para se colocar em uma posição de respeito. Quase como se pedisse desculpas por cantar algo tão grandioso.
No show do domingo passado, 21, na praia de Copacabana, a corrente do politicamente correto se fez presente na execução de Vale Tudo. Aboliram o lado irônico e debochado de Tim Maia para explicar que o amor é livre. Depois de cantarem “só não vale dançar homem com homem/nem mulher com mulher”, Ivete lembrou o público: “mas hoje está podendo!”. Nos atuais rumos do mercado brasileiro de cosméticos, é bom evitar qualquer patrulha. Mesmo que não precisasse.
O REPÓRTER VIAJOU A CONVITE DA PRODUÇÃO DO EVENTO
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ENTREVISTA - Ivete Sangalo
Qual avaliação que você faz dos shows até agora?
Eu, desde sempre, vislumbrei algo muito positivo. Primeiro, tratar com respeito da memória deste grande artista. Depois, como intérprete, acho que é um grande privilégio, especialmente num país com as cantoras que temos. Soa como uma grande oportunidade. E poder proporcionar isso ao público, de graça, é delicioso.
Como intérprete, como você está se sentido?
As melodias são muito generosas. Apesar de sofrer muita influência dele, o fato de eu já ter alguma experiência, consigo imprimir meu modo de revelar aquelas canções. Adoro cantar. É uma alegria, nunca enjoo.
É uma meta sua na carreira registrar algo fora de seu espectro?
Até mesmo no meu ambiente, supostamente confortável, é desafiador sempre. Sou uma cantora do carnaval, tenho muito apreço por este segmento e é onde eu tenho uma liberdade criativa que não é hermética. Nunca ouvi falar que eu não pudesse gravar isso ou aquilo. Vivo uma posição confortável de poder fazer o que quero. Tem a ver com amadurecimento, postura no palco, idade, uma série de coisas... É uma autoanálise constante, mas sem sofrimento.
O que tem revelado essa aproximação com o Criolo?
Somos muito parecidos na alma. Ficamos muito amigos. Compreendo o Criolo como um cara genuíno, criativo, extremamente inteligente e sensível. A melhor característica do Criolo é a sensibilidade. Daí você observa como ele escreve e se comporta. Eu sou do carnaval, ele é do rap, mas essa intersecção linda de Tim Maia nas nossas vidas vai provocar muitos movimentos que estão por vir.
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ENTREVISTA - Criolo
Estar neste projeto é o reconhecimento de seu trabalho como cantor?
Eles tiveram coragem de apostar. No Brasil temos cantores maravilhosos que poderiam fazer algo lindíssimo também. Me sinto honrado, sobretudo porque vim do rap.
Nesta imersão, o que mais você descobriu do Tim Maia?
Estou podendo viver o amor que as pessoas têm pelo Tim Maia. Porque venho de uma outra geração. Tem sido uma experiência maravilhosa.
Tim Maia propicia muita festa; esta tem sido a cara do show?
Essa sua questão elucida um outro lance: num primeiro momento, você imagina uma festa. Mas não é só isso. Tem uma grande celebração da música, porque ele levava o balanço, o groove, a negritude brasileira, mas também falava de um amor simples, do cotidiano. E, a sua maneira, descrevia um pouco como estava o Brasil e o que ele enxergava do País. É uma grande festa, sim, mas nesta festa tem muito papo para ser desenrolado.
Como tem sido este encontro com a Ivete?
É um lance de pensar com muito mais carinho o que a música representa para o povo brasileiro, não só o quintal que a nossa vista alcança e que nossos pés já andaram. É uma coisa maior. Eu e a Ivete seria algo impensável. Mais veio o Tim Maia e mais uma vez mostrou com sua solidariedade como a música é algo extremamente simples e vem para unir as pessoas. Tive uma oportunidade de encontrar uma jovem artista, que é extremamente profissional e que se o dia tem 24 horas, ela fica 26 horas falando de música. E eu sou assim também.
CRIOLO E IVETE SANGALO CANTAM TIM MAIA
Praça Heróis da FEB. Avenida Santos Dumont, Santana. Dom., às 16h30. Grátis.