As peças que o tempo prega, às vezes, são cruéis. A memória, também. Restam flashes de memória, detalhes, e um único vídeo — este uma raridade — salvo e publicado no YouTube.
E neste vídeo registrado em maio de 1999, lá está o improvável encontro entre: Tom Zé, baiano de Irará, e Tortoise, banda de jazz e explorações sonoras diversas criadas em 1990, no norte de Chicago, nos Estados Unidos. Juntos, eles dividem o palco do Park West, na cidade natal do grupo norte-americano, em maio de 1999.
Como se pode ver, o brasileiro lidera a farra, ao que parece de início, mas o que existe é uma comunhão, realmente. Improvisos, brincadeiras, ruídos, a troca entre eles é por osmose sonora.
Curiosamente, nenhum dos personagens guarda tanta lembrança assim do ocorrido, eternizado por Christopher Dunn, um professor estudioso da música brasileira e da contracultura. O autor do vídeo conectou a banda local com o baiano, em alta graças ao redescobrimento de David Byrne, o lendário líder do The Talking Heads e aglutinador da música global.
Com Tortoise, Tom Zé uma turnê pelos Estados Unidos. Em 1999, passou por Nova York, Chicago, e outras cidades americanas. “Lembro-me deles serem muito atenciosos e pacientes com meu inglês bem troglodítico”, brinca Zé, ao Estadão, ao ser pedido para esmiuçar as memórias daquela turnê. “Ensaiamos em um daqueles prédios-barracões”, espreme ele, mais um pouco: “Lembro deles terem um cabine enorme de casacos na entrada de casa. Era ali que eles escolhiam a roupa do dia, inclusive dos shows.”
“Isso foi, cara, há 25 anos”, ri Jeff Parker, músico de jazz que ingressou no Tortoise oficialmente em 1998, quando a banda lançou o seminal TNT, álbum que os traz de volta ao Brasil, agora em 2024, para uma apresentação única no Cine Joia, nesta quinta-feira, dia 9, trazido pelo selo indie Balaclava Records, com ingressos já esgotados.
Parker, portanto, havia acabado de entrar no banda quando Tom Zé apareceu por lá. “O que me lembro era que os fãs realmente estavam presentes ali, animados com tudo. Conheciam as letras, cantavam unto, sabe? Era um público principalmente brasileiro que morava nos EUA”, ele revisita.
“Tom Zé chamou a atenção pelo seu gosto excepcional de música e na sua maneira de se comunicar”
Jeff Parket, do Tortoise
Logo na sequência da visita aos EUA, foi a vez de Tom Zé replicar o favor: quando vieram ao País, também em 1999, lá estava Tom Zé. “Nessa ocasião, quem os ajudava como tradutor era eu, passando algumas palavras deles para o português”, explica o brasileiro. “Foi muito agradável e muito eficaz em termos de divulgação, até para a minha própria”, garantiu.
Para o brasileiro, mesmo que os norte-americanos não acompanhassem as suas ideias mirabolantes a respeito de como tirar som de instrumentos musicais inusitados, ele recebia em retorno uma dose de experimentalismo que surfava na vanguarda da zona limítrofe entre jazz, rock e o que mais você quiser interpretar do som da banda.
No topo do mundo instrumental - se é que ele existe
No fim dos anos 1990, poucas eram as bandas do circuito independente a possuir o status e a atenção da imprensa que o Tortoise.
Era o pós-grunge, pós-rock farofa, pós-muito e a cena da música independente fervia. Rádios universitárias intelectuais busca a próxima grande atração e gravadoras, idem, buscavam a banda que ditaria a tendência no futuro.
Surgia no início daquela década, o Tortoise, criado por Doug McCombs, baixista, e o baterista John Herndon, com o intuito de se tornarem uma dupla para sessões de estúdio e gravações, tal virtuosismo e flexibilidade.
É importante lembrar que a cena do blues e jazz de Chicago é frutífera, e o Tortoise logo estreou com o álbum autointitulado, de 1994, com uma formação que permaneceria quase igual até hoje (entre as mudanças está a saída de David Pajo, guitarrista, substituído por Jeff Parker, entrevistado desta reportagem).
O grunge dos anos 90
Há de se lembrar que, neste mesmo ano de 1994, saíram trabalhos seminais que marcaram o considerado rock alternativo de artistas como Soundgarden (Superunkown), Nine Inch Nails (The Downward Spiral), Oasis (Definetely Maybe), Blur (Parklife), Green Day (Dookie), Pearl Jam (Vitalogy), para citar alguns.
Chicago era considerada a “Seattle da costa leste”, em alusão à ascensão das bandas de Seattle na capitania do grunge noventista (Nirvana, Pearl Jam, etc). Nesta cena, portanto, Tortoise estava inserido por flertar com o rock em um aspecto mais etéreo, de subversão, mesmo que seus experimentalismos se conectasse com outros gêneros e não postasse em guitarras com distorções arrastadas.
Quando saiu o segundo álbum da trupe, Millions Now Living Will Never Die (1996), o Tortoise era considerado padrinho do movimento post-rock, que tem músicas instrumentais climáticas como parte de sua concepção.
Criando TNT
Foi na turnê deste disco que Jeff Parket ingressou na banda e começaram a gravar TNT, o álbum considerado o mais importante da história deles – e também um dos mais relevantes dos anos 90, pedra fundamental para uma tonelada de outros artistas que se aventuraram por criar ambiências sonoras com guitarras, baixo, bateria e aparatos eletrônicos diversos e, por natureza, desafiam a capacidade de categorizá-los.
“Fizemos aquela turnê do segundo álbum durante o verão de 1996. O nosso entrosamento estava bom”, lembra-se Parker. Quatro dos cinco integrantes foram morar juntos, no norte de Chicago, e lá nasceu TNT.
“A sala de estar era o estúdio e a cozinha era o local de ensaio”, diverte-se. “Sentávamos na cozinha, Doug McCombs e eu, e tocávamos uma lap steel [guitarra tocada deitada, na horizontal, como se fosse um teclado] e aquele som reverberava pelo prédio todo.”
O nome do álbum, curiosamente, foi inspirado na música TNT, do AC/DC, uma banda que está no completo oposto do rock do Tortoise, com suas guitarras de riffs dilacerantes e estética sonora imutável, mesmo com o passar dos anos. “Sim, o nome veio dessa música”, confirmou Parker, “mas eu pessoalmente estava ouvindo muita música do Miles Davis dos anos 70 na época”, admite.
O Tortoise não sabia que fazia história ali. “Não pensamos antes sobre qual seria a sonoridade ou coisa assim. Estávamos somente animados para tocar uns com os outros. E a banda estava naquele momento com visibilidade. Queríamos fazer algo especial”, ele explica. O que mudou foi a chegada da possibilidade de trabalhar com a música digital, nas vésperas da troca do milênio.
“Era um momento em que a música eletrônica e a música mais tradicional estavam em choque. O cenário musical estava se transformando de analógico para o digital. O John McEntire conseguiu, de alguma forma, colocar a mão em um Pro Tools (programa de edição, hoje bastante popular nos estúdios) então ficamos fascinados com as possibilidades que poderíamos fazer com esse novo formato digital, sem precisar juntar fitas analógicas”, conta Parker.
Música eletrônica, minimalismo, jazz e algum rock, é claro
A chegada do Pro Tools digitalizou - e democratizou, em partes - o fazer música, antes um trabalho artesanal bastante completo, que envolvia cortar as fitas com as gravações e colá-las, para criar uma “edição” e fazer ajustes. O Tortoise usou disso para criar camadas sobre camadas de som, sem se preocupar em como fazer para que essa sonoridade se repetisse ao vivo, sobre o palco.
“Inclusive, os primeiros shows foram super difíceis. Tínhamos um equipamento que era tão grande quanto uma geladeira. Era muito equipamento que precisávamos usar, bateria, teclados. Estávamos fazendo coisas que hoje são comuns, estávamos sampleando. Nas, naquela época, você não fazia isso automaticamente, com um botão. Se você quisesse usar o sampler [pedaço de música a ser repetido dentro de outra], você deveria levá-lo com você. Hoje, temos laptops que fazem esse trabalho.”
Quando foi lançado, TNT foi tratado pela Rolling Stone dos Estados Unidos como um acontecimento a ser estudado. “O resultado é um álbum que não soa como de mais ninguém. O Tortoise permanece um bicho estranho, uma banda de jam equilibrada entre o palco e o estúdio”, escreveu o crítico Ben Ratliff. A Billboard, também norte-americana, celebra o público jovem do grupo e a sua influência nas próximas gerações de bandas: “O futuro é brilhante para o Tortoise, que se encontra na vanguarda de uma escola de artistas de música instrumental em desenvolvimento tão variada quanto Ui, Don Caballero, Pell Mell e Cul De Sac, só para citar alguns.”
Para Parker, o álbum é tão lembrado, justamente, por abrir-se para novas experiências. “Definitivamente ampliou nosso público”, ele avalia. E, claro, chegou ao Brasil, ancorado com a nova ascensão de Tom Zé.
“Nós seguimos fazendo isso porque amamos isso. Adoramos a comunhão que se cria em torno da música. Existimos há tanto tempo porque somos amigos, porque gostamos da companhia um do outro. Somos todos bons amigos. O que posso dizer, da forma mais humilde e modesta possível: é que somos uma banda muito boa.”
Jeff Parketr, do Tortoise
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