Os Estados Unidos usaram a música clássica como principal ferramenta na “desnazificação” da Alemanha e também fizeram do estilo musical um dos grandes estandartes da guerra fria cultural com a União Soviética no final dos anos 1940 e nas décadas seguintes. Desde o imediato pós-guerra, em maio de 1945, a Alemanha foi fatiada em quatro comandos militares, comandados pelos países vencedores: EUA, Inglaterra, França e URSS.
Apenas os norte-americanos montaram um projeto de “desnazificação” baseado em dois pilares: o rádio, que era então tão poderoso quanto as redes sociais de hoje em dia; e a música clássica, música de raiz alemã. Os números são impressionantes.
Havia, por exemplo, 11 orquestras em atividade entre 1943 e 1945 na Alemanha. Em 1947, elas já eram 110. Entre junho e dezembro de 1945 110 obras orquestrais foram mundialmente estreadas. E no ano seguinte já funcionavam a todo vapor mais de 200 salas de concerto.
A mais reluzente, a Filarmônica de Berlim, ressurgiu milagrosamente. Mesmo com 30 de seus músicos mortos na guerra e muitos instrumentos confiscados pelo exército soviético, ela fez seu primeiro concerto apenas 13 dias após a rendição alemã. Atento, o comando norte-americano concedia ração diária de 600 gramas para os músicos da filarmônica, mas a ração dos músicos de metais (trombones, trompetes, trompas, tubas) era 50% superior, de 900 gramas diários, em função do natural esforço físico maior.
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A parte artística e mercadológica foi assim montada: bibliotecas de partituras – a maior parte de obras de compositores norte-americanos – foram colocadas à disposição dos músicos alemães. Entre junho de 1946 e junho de 1947, houve 374 concertos sinfônicos e camerísticos em toda a Alemanha. No ano seguinte, o maestro Leonard Bernstein fez uma turnê pelo país. Tudo transmitido pelo rádio.
Em 1949, os EUA controlavam cinco emissoras, enquanto os franceses, ingleses e soviéticos somente uma cada. Na programação, forte ênfase na música clássica, incluindo até esquetes sobre como se devia ouvir a música contemporânea. Além disso, compositores foram contratados para difundir a música americana na Alemanha: Henry Cowell, Samuel Barber, Roy Harris, Gian Carlo Menotti, David Diamond, Walter Piston e Aaron Copland.
A cooptação da Filarmônica de Berlim foi científica. O maestro romeno Sergiu Celibidache (1912-1996) assumiu como maestro titular no pós-guerra até 1954. E, assim como nos tempos do mítico Wilhelm Furtwängler ela fora a menina dos olhos de Hitler e Goebbels, passou a ser veículo de divulgação preferencial dos compositores norte-americanos na batuta de Celibidache.
Uma caixa com 13 CDs (Audite, 2014) é praticamente toda preenchida com compositores norte-americanos a partir de concertos transmitidos pelas rádios controladas pelo comando dos EUA entre 1945 e 1950. Félix Mendelssohn, Darius Milhaud, Debussy, Shostakovich e Stravinsky convivem com Samuel Barber e Aaron Copland, dois dos maiores compositores norte-americanos do século 20, mas também com outros menores como Walter Piston, Edward MacDowell e David Diamond. Da chamada América Latina, apenas o mexicano Carlos Chávez (1899-1978).
E na América Latina?
Até aqui a história é bem conhecida e documentada. A musicóloga norte-americana Carol A. Hess vem dedicando suas pesquisas há cerca de duas décadas à música na América Latina. Especificamente à música clássica, ou de concerto, visando destrinchar as relações entre as duas Américas, a do Sul e a do Norte, durante o século 20.
Em 2013, publicou Representing the good neighbor (Editora da Universidade de Oxford), um divisor de águas nos estudos das relações musicais entre EUA e América Latina. O livro começava a desvendar os fundamentos que determinaram a postura dos Estados Unidos durante a Guerra Fria Cultural com a URSS, até a queda do Muro de Berlim, em 1989 – em que o maestro Leonard Bernstein, o mesmo que excursionara em 1948 pela devastada Alemanha do pós-guerra e agora dava-se ao luxo de alterar o texto de Schiller no último movimento da “Nona” de Beethoven tocada no concerto histórico que marcou a derrubada do Muro. Em vez de freude (Alegria), o coro cantou freiheit (liberdade).
Mas esta é outra história. Em seu livro de dez anos atrás, Carol mostra como a música latino-americana ocupou bom espaço na vida cultural norte-americana, como campo de testes privilegiado da “política de boa vizinhança” de Roosevelt nos anos 1930/40 que propiciou aos EUA transplantar suas premissas para a guerra fria cultural que dominou as artes e a cultura no planeta por meio século.
E agora, em 2023, ela avança estudando como se formatou o projeto no recém-lançado Aaron Copland in Latin America - Musical and Cultural Politics (Ed da Universidade de Illinois, 2023). Soa forte, e ela não escreve isso com todas as letras, mas na verdade, os EUA usaram a música clássica como arma anticomunista na América Latina, marcando território, cooptando compositores e músicos, levando-os para os EUA e vitaminando a vida musical da América do Sul, sobretudo no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai.
O livro esmiúça as quatro estadas de Copland na América Latina entre 1941 e 1963 como contratado do Departamento de Estado: ele divulgou obras de compositores norte-americanos e também levou compositores e obras brasileiras para serem executadas em salas de concerto nos EUA. Em entrevista ao Estadão, Carol admite que a maior parte dos compositores norte-americanos consideravam-se superiores.
“Em geral, sim, é lamentável que muitos se tenham sentido superiores aos seus homólogos latino-americanos. É por isso que a visita de Copland se destaca como um exemplo a ser seguido. Infelizmente, este complexo de superioridade tem caracterizado muitos aspectos das relações entre os EUA e a América Latina. E é uma atitude que não tem qualquer sentido, especialmente na atualidade, dada a turbulência política, racial e cultural em que os Estados Unidos se encontram”, afirma Carol.
Ela ressalva – e detalha com meticulosas pesquisas – que “em sua primeira turnê, em 1941, Copland visitou nove países e conheceu cerca de 60 compositores. Alguns ainda eram estudantes. É improvável que admirasse todos eles. É claro que percebi que não deve ser muito gratificante, para os leitores brasileiros, saber que Copland não ligava muito para Villa-Lobos! Mas um compositor que Copland respeitou profundamente foi Mozart Camargo Guarnieri, que conheceu em São Paulo, em 1941, e com quem manteve contato por décadas”, diz a autora.
“Como Copland escreveu em seu diário de viagem, Camargo Guarnieri tinha ‘tudo o que é preciso: personalidade, técnica e imaginação fecunda com muito trabalho para mostrar’. Suas obras manifestaram ‘frescor’ e por isso foram apresentadas nos Estados Unidos.
Copland sentia o mesmo em relação a outros latino-americanos. Conhece-se a sua admiração pelo compositor mexicano Carlos Chávez. Também ficou impressionado com José María Castro da “dinastia” musical argentina, com Alberto Ginastera (Argentina), Juan Orrego-Salas (Chile), Hector Tosar (Uruguai) e vários outros”, prossegue Carol.
“É verdade que Copland reclamava de compositores que não admirava. Em todos os casos, exceto um, porém, ele limitou suas opiniões às páginas de seu diário. Resumindo: comportou-se como um diplomata”, conclui a escritora.
O diário de Copland é às vezes explosivo, como nesta observação publicada no livro de Carol de 2013. Em sua segunda “latin american tour” em 1947, Copland encontrou-se com Koellreutter, o introdutor no Brasil da música serial. Descreveu-o em seu diário sem nenhum tato posteriormente como um ‘típico germânico dodecafônico’ que ‘encorajou um bando de paspalhos a imaginarem que eram compositores’.”
Ninguém é perfeito. Ou melhor, na intimidade ninguém é perfeito.
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