Muito difícil reproduzir o último dia dos Beatles. Ao longo de 18 anos de existência (e de apenas 8 de sucesso planetário), a banda experimentou vários últimos dias. Explica-se: o mesmo gênio que no dia 6 de julho de 1957 uniu John Lennon e Paul McCartney, criando a mais talentosa dupla de compositores da história do rock, também plantou entre eles a semente da disputa, do ego inflado, da discórdia, da raiva e do desenlace.
Para o público externo, os Beatles, mais do que músicos competentes, eram ídolos, quatro bons garotos sorridentes do norte da Inglaterra, companheiros e amigos. Tudo isso foi mais ou menos verdade até agosto de 1966, quando George Harrison, John Lennon e Ringo Starr decidiram que a banda não mais iria se apresentar em público. Estavam exaustos. Paul, entusiasta das excursões, foi voto vencido.
Se antes de 1966 eventuais desentendimentos eram resolvidos com a mediação do empresário Brian Epstein e do produtor George Martin, nos anos seguintes o ressentimento passou a ser um elemento a minar as relações da banda. Os contrastes musicais e pessoais entre Paul e John cresciam. George e Ringo, até então meros coadjuvantes, passaram a reivindicar mais espaço nos álbuns e quase nunca eram atendidos. A soberba imperava. Os Beatles começavam a acabar.
Como em qualquer relacionamento, nada acaba de repente, mas no convívio diário, nos pequenos detalhes. Assim, o fim dos Beatles foi uma longa e triste agonia. Fixar o 10 de abril de 1970 como a data em que a banda se separou é só uma formalidade de calendário. Os quatro músicos ainda experimentariam várias separações.
Naquele 10 de abril de 1970, numa boa jogada de marketing, Paul anunciou sua saída dos Beatles e aproveitou para anunciar o lançamento de seu primeiro álbum solo, intitulado McCartney. John Lennon não deixou a data passar em branco. “Tudo não passou de um golpe de Paul para promover seu disco e ganhar dinheiro.” A relação azeda entre ambos haveria de continuar por vários anos, 1975.
É bom lembrar que em setembro de 1969, ou seja, quase sete meses antes da decisão de Paul, John anunciara seu “divórcio” da banda, sendo temporariamente demovido da ideia para não empanar interesses comerciais do novo empresário da banda, o nova-iorquino avarento Allen Klein, queridinho de Lennon, George e Ringo, e desafeto figadal de Paul.
Antes disso, em meados de 1968, durante a gravação do Álbum Branco, certo de que o grupo estava insatisfeito com seu desempenho na bateria, Ringo jogou suas baquetas para o ar e foi velejar pela costa da Sardenha com o ator Peter Sellers. Paul assumiu a bateria e Back in the USSR é prova disso. Mais: no início de 1969, em plena gravação do álbum Let it Be, depois de uma discussão com Paul sobre um lick banal de guitarra, George levantou-se e foi embora. John foi frio e cruel. “Dane-se George, vamos chamar Eric Clapton.”
Se for possível traçar uma linha do tempo que explique a separação dos Beatles, o momento zero poderia ser o abandono das excursões em 1966. Em seguida, a morte de Brian Epstein, descobridor, divulgador, empresário e responsável por gerir a fortuna acumulada pela banda. No dia 27 de agosto de 1967, aos 32 anos, Epstein morreu de uma overdose de Carbitol, droga usada para combater a insônia. Sua morte foi um choque para os quatro beatles que, de repente, se viram sozinhos, desamparados.
Em fevereiro de 1968, em busca de paz e de alguma razão para tocar seus projetos, foram para Rishikesh, na Índia, meditar no ashram do guru Maharishi Mahesh Yogi. Paul e Ringo voltaram duas semanas depois, desencantados. O guru teria investido sexualmente contra uma de suas alunas. George, já bastante envolvido com a cultura indiana, e John, ficaram por mais algum tempo. O fato é que quando os quatro se reuniram novamente em Londres, já não eram mais as mesmas pessoas. A paz perseguida não existia e passaram a agir aleatoriamente, erraticamente.
Um exemplo: sem qualquer experiência em negócios, criaram a Apple Corps. Queriam um estúdio próprio, um espaço que juntasse música, artes plásticas, divulgação de novos talentos e happenings típicos dos anos 60. Para gerir a empresa, precisavam de um novo empresário. Paul, que já namorava Linda Eastman, optou pelo pai e pelo irmão dela. John, George e Ringo optaram por Allen Klein. Mais discórdia, provavelmente a mais nefasta delas.
Com obrigações contratuais com a EMI, na primavera de 1968 entraram em estúdio para a gravação do Álbum Branco (“o álbum da tensão”, segundo Paul) e os egos afloraram ao extremo. Não eram mais uma banda, mas quatro músicos preocupados exclusivamente com seu material. Para complicar a situação, John introduziu um novo elemento desagregador nos estúdios de Abbey Road: Yoko Ono.
Nunca jamais os Beatles haviam permitido a presença de estranhos em seu ambiente de trabalho. Dessa vez haveria de ser diferente. Apoiada por John, Yoko não apenas se instalou no estúdio, como começou a dar palpites nas músicas. A gravação do Álbum Branco foi marcada pelo desamor, a ponto de George e John saírem aos murros por um pacote de biscoitos digestivos.
Os biscoitos eram de George e Yoko pegou um deles sem autorização. Na sala de controle, George viu a “ousadia” de Yoko e lançou um alto e sonoro “vadia” (slut). Não percebeu que John estava logo atrás dele. Daí para os socos foi um pulo. Foram separados pelos técnicos, entre eles o engenheiro de som Geoff Emerick, responsável por transformar em realidade as propostas sonoras mais aparentemente descabidas da banda. Vale lembrar que durante as gravações do mesmo Álbum Branco, Emerick demitiu-se.
Em janeiro de 1969, apesar dos pesares, um novo projeto estava em gestação. A ideia era ocupar o frio Twickenham Film Studios e registrar os ensaios de um novo álbum a ser chamado Get Back, mas que acabou batizado de Let it Be. O gran finale seria um show ao vivo já agendado. Mas o desânimo era brutal e apenas Paul parecia ter algum entusiasmo.
“Não sei por que se envolveram nisso se não têm interesse. Por que vocês estão aqui? Eu estou porque quero fazer um show, mas não vejo nenhum apoio.” Se esperava alguma reação dos outros três, Paul perdeu seu tempo. Os ensaios, transformados no filme Let it Be, foram melancólicos, mas, de alguma forma, úteis. Possibilitaram a última apresentação pública dos Beatles, no teto do edifício da Apple, na Saville Row, em Londres.
Se o Álbum Branco foi o da tensão e Let it Be o da indiferença, Abbey Road foi o canto de um cisne já rouco e depenado. Para começar, John desaprovou a proposta de Paul, que queria tornar o lado B do disco um medley, ou seja, um conjunto de canções sem interrupções entre elas. Sua vontade foi atendida, sem antes muita discussão. John chegou a propor que suas músicas ocupassem um lado do disco e as de Paul, o outro. Mas havia duas canções magníficas de George: Something e Here Comes the Sun.
Por mais que lançassem balões de ensaios anunciando separação, os Beatles, de quando em quando, e individualmente, falavam na possibilidade de voltar a gravar e até mesmo de se apresentar ao vivo. Puro jogo de cena. Por trás disso tudo estavam os interesses financeiros de cada um, seus álbuns solos e a necessidade de encerrar as atividades comerciais da Apple, um voraz sorvedouro de dinheiro.
Em março de 1973, como Paul queria, John, George e Ringo romperam contrato com Allen Klein e moveram ações contra ele em Londres e Nova York. Foi o suficiente para que os quatro músicos decidissem cooperar com vistas a um verdadeiro acordo de rompimento.
Em dezembro de 1974, assinaram um documento chamado de Beatle Agreement. A dissolução formal, jurídica e definitiva deu-se no dia 9 de janeiro de 1975. Os negócios estavam desfeitos. Os Beatles acabavam. O sonho também.
Por mais contraditório que possa parecer, a expressão Beatles 4Ever resiste até hoje, 50 anos depois daquele simbólico 10 de abril de 1970. A cada ano os Beatles ressurgem em reedições de seus discos com novas mixagens, em livros, artigos ou em efemérides como os 50 anos de Sgt. Peppers, sem contar o projeto Anthology, nos anos 90. Em seus shows, ainda hoje Paul revive vários sucessos da banda. A morte de John (1980) e de George (2001) não apagou seus legados. E a razão é simples. O mundo amava (e ainda ama) os Beatles...bem mais do que eles próprios se amavam.
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