A cada dia, 100 mil novas músicas são despejadas nas plataformas de streaming e atingem ao mesmo tempo praticamente a totalidade da população do planeta. É aterrador, mas verdadeiro. Minuto a minuto, digladiam-se os gigantes do pop, sertanejo & cia. empilhando vertiginosamente músicas cada vez mais descartáveis nas pantagruélicas goelas de Youtube, Spotify, Apple, Amazon, Deezer, Tidal.
O desafio é ainda mais assustador e gigantesco para o músico clássico, que lida, como o nome indica, com músicas clássicas, no sentido de que assim se chamam porque permanecem significativas desde que foram compostas – casos de Bach, Mozart, Beethoven, este último de imagem tão poderosa que personifica a liberdade de criação e qualidade de invenção da música clássica. Afinal, é por isso que ela permanece essencial para a humanidade.
Sem fazer concessões, gravando o que consideram importante, ou seja, obras de Mozart, Saint-Saëns, Massenet, e até de compositores brasileiro vivos como Liduíno Pitombeira e Ernani Aguiar, alguns dos melhores músicos clássicos brasileiros vêm fazendo o que no futebol se chamaria gols de placa inusitados. E tudo aconteceu este ano.
O exemplo mais impressionante é o da pianista Olga Kopylova, nascida 44 anos atrás no Uzbequistão. Ela é pianista da Osesp desde 2000. Ao lado do violinista Yuriy Rakevich, também da Osesp. gravou um álbum de “encores”, as peças curtas em geral conhecidas do público que os músicos costumam tocar como “bis” em seus recitais e concertos.
Eles bancaram os custos de estúdio. “Nem eu nem o Yuriy tínhamos qualquer intenção de ganhar algo com isso”, conta Olga em entrevista ao Estadão. “Queríamos somente o que todo artista quer: sermos ouvidos pelo maior número de pessoas possível e ter o nosso trabalho registrado”.
Uma das faixas, a da conhecida Meditação da ópera Thais, de Massenet, entrou em várias playlists, e hoje os números de audições ultrapassaram 4 milhões. Eles ganharam o que nunca sonharam obter com um disco, uma cifra de seis dígitos. E vão receber da Associação Brasileira da Música Independente (ABMI) a certificação “Play de Ouro”, reconhecendo singles e álbuns que ultrapassam os 4 milhões de streams nas plataformas digitais. É o antigo “Disco de Ouro”, ressuscitado na era digital.
Outra gravação de Olga com o violinista Claudio Cruz – eles estão fazendo a integral das sonatas para violino e piano de Mozart – também entrou em playlists de várias plataformas e em oito meses alcançou 3,9 milhões de streams. Novo gol de placa.
Os dois nomes que mais aparecem – três vezes cada – na playlist abaixo com os campeões em streams da Azul Music são, entre os compositores, Mozart – que faz sucesso e bate recordes desde o século 18 – e o dublê de maestro e violinista Claudio Cruz.
O efeito cascata repetiu-se neste ano com o duo do violoncelista Antonio Meneses com o pianista Cristian Budu. Eles lançaram um álbum intitulado After a Dream em setembro do ano passado. Em um ano, ultrapassaram os 2 milhões de streams.
Feliz da vida, Olga diz que “afinal, o objetivo maior de um artista é trazer esperança para as pessoas. Sem isso, o nosso ofício não faz nenhum sentido. A remuneração é importante, mas o reconhecimento é fundamental. Para mostrar o nosso ofício, que é música de concerto, nós precisamos de espaço para sermos ouvidos. E achamos este espaço nas plataformas, com ajuda da gravadora Azul”.
A menção à gravadora nos leva para o andar de baixo, o do mercado musical, que hoje não é mais feito daqueles artefatos fósseis, os CDs físicos. O que existem hoje são “tracks”, “singles”, “streams”, “views”. A Azul é a primeira gravadora brasileira a saber lidar com o mercado de música clássica no Brasil no século 21.
Foi fundada há 30 anos por Corciolli – músico e compositor de 55 anos que alcançou o impressionante volume de 195 milhões de streams (cada stream corresponde a um novo ouvinte que escuta sua música nas plataformas digitais) com dois daqueles artefatos que antigamente se chamavam CDs, ou álbuns lançados em 2001. Mas não com os álbuns, e sim com “tracks” específicos intitulados Water, Rain, Sea, Work e Children.
Corciolli montou a Azul Music em 1993 para gravar seu primeiro CD, quando rolava a onda da new age, música para meditação e relaxamento. “Criei um tipo de música que buscava isso em essência, mas é mais contemplativa, um tipo de minimalismo e ‘ambient music’, diz em entrevista ao Estadão.
Ele tem enorme traquejo na lida com as novas regras que determinam o negócio da música no planeta. Afirma que está fazendo sucesso com música clássica – a Azul tem 70 álbuns clássicos no catálogo – porque transplanta o modelo do pop: “Tratamos a música clássica como um produto fonográfico. Nossa inovação foi a sacada de trabalhar o single”. Ele usa, inclusive, a expressão das antigas gravadoras de discos físicos, desde o LP até o CD: música de trabalho.
Como as obras neste gênero são longas e em vários movimentos, ele escolhe um mais curto ou sugere aos músicos a inclusão de uma ou duas peças curtas com o argumento de que eles devem replicar na gravação o que fazem no recital ou no concerto. Depois do programa mais desafiador, os músicos costumam presentear o público com peças curtas que todos conhecem – é o bis.
A Azul tem contrato com The Orchard, empresa que se define como distribuidora e que Corciolli chama de “agregador” (termo usual no mercado de streaming). Hoje, no entanto, ninguém precisa de logística, o produto é digital. Pois a Orchard oferece singles de terceiros para as plataformas de streaming. Foi assim que Olga, Yuriy e Claudio Cruz entraram em playlists e alavancaram os “streams”.
O álbum, portanto, é fixado em desenvolvimento conjunto entre os músicos (que contratam e pagam antecipadamente os custos de estúdio, no caso o Arsis) e a equipe de Corciolli, visando otimizar possibilidades de potencialização dos “streams”. Ele esclarece que “a remuneração é compartilhada igualitariamente, em 50/50, do valor líquido efetivamente recebido das plataformas”.
Campeões em stream da Azul Music
Clássicos
1. Massenet: Thaïs: Méditation (Arr. for Violin and Piano by Martin Marsick) – Yuriy Rakevich, Olga Kopylova
- 4,1 milhões de streams | Lançado em 11/03/2022
Para ouvir em todas as plataformas: https://orcd.co/thaismeditation
2. Mozart: Sonata for Piano and Violin in F Major, K. 377, No. 25: II. Andante – Claudio Cruz, Olga Kopylova
- 3,9 milhões streams | Lançado em 10/02/2023
Para ouvir em todas as plataformas: https://orcd.co/sonataandante
3. Mozart: Duo for Violin and Viola in B-Flat Major, K. 424, No. 2: II. Andante Cantabile – Emmanuele Baldini, Claudio Cruz
- 2 milhões streams | Lançado em 04/11/2022
Para ouvir em todas as plataformas: https://orcd.co/andantecantabile
4. Saint-Saëns: Le Carnaval des Animaux, R. 125: XIII. Le Cygne – Antonio Meneses, Cristian Budu
- 1,9 milhão streams | Lançado em 01/09/2023
Para ouvir em todas as plataformas: https://orcd.co/lecygne
5. Mozart: Divertimento, K. Anh. 229/439b, No. 4: V. Allegretto (Arr. For Violin, Viola and Cello by Claudio Cruz) – Trio Carlos Gomes
- 1,4 milhão streams | Lançado em 22/07/2022
Para ouvir em todas as plataformas: https://orcd.co/5divertimentos
Os campeões gerais da gravadora (em milhões de streams):
Todas de Corciolli, lançadas em 30/03/2001. As três primeiras estão no álbum Nature e as duas últimas no álbum Feng Shui.
- Water – 75,1
- Rain – 39
- Sea – 32,2
- Work – 20,9
- Children – 17,8
Total de streams de Corciolli: 195 milhões
A obra que ultrapassou 500k de Claudio Cruz com o Gabriel Marin é Duos de Prados para Violino e Viola: III. Andante Mosso, de Ernani Aguiar
Para ouvir em todas as plataformas: https://orcd.co/compositoresbrasileiros
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.