Se a pedra inaugural for o estrondo do álbum O Canto da Cidade, de Daniela Mercury, são 27 anos subindo ladeira. Se for a música Fricote, de Luiz Caldas, 32. A axé music, título pejorativo colocado na embalagem do conjunto de ritmos e danças baianos formatados no início dos anos 90 para se tornar uma das maiores potências industriais do País, reinou o quanto pode. Saiu dos terreiros, abasteceu-se dos blocos, conquistou as rádios, entrou nas TVs, fabricou heróis e multiplicou-se em uma cultura de retroalimentação. Ao lado do sertanejo romântico e do pagode dos anos 90, estabeleceu a frente cultural mais avassaladora nos meios de comunicação do País. E então, a força da grana que o ergueu a partir das gravações de Luiz Caldas e Daniela também destruiu sua supremacia. Ambição de empresários, má administração de carreiras e a falta de investimento fizeram o axé perder espaço para o sertanejo na própria Bahia, um mercado até então blindado contra invasões bárbaras. A axé não é mais a mesma.
A reflexão sobre sua perda de protagonismo marca o desfecho do documentário Axé – Canto do Povo de Um Lugar, do diretor Chico Kertész (leia a crítica na página C3). “O problema é que o fogo estava muito alto. Alguém foi lá e o abaixou”, diz no filme o músico Letieres Leite. “Não nos realimentamos, não criamos espaço para o novo, não nos preocupamos com o outro”, diz ao Estado o diretor Kertész. Ele cita o circuito da música sertaneja ao falar sobre a estratégia que faltou aos baianos. Das 25 músicas mais tocadas nas rádios do Brasil em 2016, 22 são de artistas sertanejos. Apenas Anitta, Justin Bieber e Wesley Safadão conseguiram perfurar as paredes do agronegócio musical, uma supremacia regada por quantias impensáveis de dinheiro em forma de “verba de marketing” – o que responde também por “jabá”.
Kertész dá o que pode ser uma boa notícia aos saudosos axezeiros e um pesadelo aos que decretaram a axé uma das inimigas da diversidade cultural. “Agora não tem mais para onde cair”. Ele cita o bom momento do grupo Baiana System e o aparecimento do baiano MC Beijinho como exemplos de renovação. “Os sertanejos tiveram mais competência do que nós para vender uma nova música. Agora, é hora de subir.” O funk de Beijinho, embalado por tambores do Olodum, já foi cantado por Caetano Veloso em um vídeo caseiro – uma atitude bem menos ingênua do que faz pensar o chinelo de dedos que o compositor usa enquanto canta Me Libera Nega. Caetano avaliza seus conterrâneos como nenhum outro artista, e sabe a força que uma gravação sua possui. “Isso (essa crise) não acontece porque a música baiana sempre acolheu o Brasil. E temos grupos como Harmonia do Samba, Psirico, coisas maravilhosas. O axé tem uma história de glória.” Beijinho interrompe a pergunta do repórter quando ouve a palavra crise. “Pra começo de conversa da nossa entrevista, o samba de roda baiano está ressurgindo com Beijinho. Vou lançar em breve um disco e você vai ver.”
O compositor Márcio Mello, autor de músicas como Nobre Vagabundo, gravada por Daniela Mercury, vê o início da curva descendente iniciar antes mesmo da consolidação sertaneja. “A Bahia se deixou de lado e os artistas passaram a investir mais na dança. Com o tempo, a música virou dança. Temos que voltar a fazer música.” O enfraquecimento da cena é sintoma de algo ainda pior, na opinião de Roque Fernando, produtor cultural que vive no bairro do Curuzu. Para ele, a violência esvaziou as tradições de terreiro baianas, como a do Ilê Aiyê, e tem provocado uma desconexão da produção cultural com as ruas. “A fonte está secando. Não temos mais os movimentos que tínhamos na periferia. Por uma questão cultural, não era para termos o sertanejo fazendo sucesso por aqui.”
O prefeito de Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM), não acredita na necessidade de uma política cultural para a preservação do gênero que mais divisas levou para o território baiano. “Essa crise que você diz tem de ser relativizada. Veja que o próprio sertanejo vem à Bahia beber nas nossas fontes. O impacto econômico é ainda muito importante”. Ele está certo, mas o caminho contrário também existe. A axé, como ritmo, não existe. O que se ouve na base de grupos como Harmonia do Samba e É o Tchan é o mais genuíno samba de roda do Recôncavo Baiano. “É preciso prestar atenção no que eles estão fazendo”, disse Paulinho da Viola nos anos 90. Carlinhos Brown cria divisões rítmicas para os tambores e Luiz Caldas se apodera dos toques do ijexá e do afoxé em seus hits. Esse desprendimento estético permite aos músicos uma liberdade que não existe em qualquer cena. Assim como os sertanejos bebem em seus hits, os baianos se fartam de tudo o que pode virar sucesso.
Daniela Mercury diz assim: “Parece que tudo aquilo que cantamos nos anos 90 não tem importância nos dias de hoje.” Luiz Caldas, o herói da história, vê uma saída digna. “Não deixamos de cantar a Bahia, mas essa geração que surgiu precisa de alguém que a conduza. Não podemos pensar comercialmente o tempo todo. É plantar, regar e esperar a hora de colher.”
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