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Crítica: Especial de Roberto Carlos alterna encontros forçados e emoção genuína

Aos 82 anos, imortal ou congelado, dependendo do ponto de vista crítico, ele seguiu a tradição de usar especial para transfusões de sangue com jovens do momento

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Por Pedro Só
Atualização:

De onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo, já dizia o sábio Barão de Itararé (1895-1971). Mas ninguém em sã consciência espera inovações de um especial de Roberto Carlos na TV Globo, instituição brasileira que chegou à sua 49ª edição ontem à noite. De terno branco, gravatinha dourada e o indefectível esforço capilar que se desdobra há décadas na luta contra a calvície, o Rei manteve a majestade com o talento que todos conhecem e a sagacidade mercadológica de sempre.

Aos 82 anos, imortal ou congelado, dependendo do ponto de vista crítico, desde 1974 o Rei usa seu especial para transfusões de sangue com jovens que estão momentaneamente estourados. Não que ele precise disso, do ponto de vista artístico ou comercial. Mas o Ibope do programa precisa muito.

Roberto Carlos cantou com Ana Castela, a cantora do momento Foto: Fabio Rocha/TVGlobo

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Roberto começou com a bela Eu te amo, te amo, te amo, que ele canta desde 1968 (lançada no LP O Inimitável) e depois repetiu, algo à moda de uma Siri ou Alexa:

“A cada ano que passa, aumenta a minha alegria de dividir essa noite com você”. Pouca emoção, bicho. A segunda música foi a cancelada Esse cara sou eu, de 2012, criticada por ter um eu lírico de espírito obsessor. Mas o público da gravação não estava nem aí: provoca frisson o trecho em que Roberto, na pele do amante supostamente abusivo, se abana ao cantar “fala outras coisas que te dão calor”.

No meio de encontros e desencontros armados, às vezes a mágica acontece. Na edição exibida ontem, gravada no Qualistage, no Rio de Janeiro, em 29 de novembro, isso se deu no dueto com o sambista Mumuzinho, Roberto Carlos emocionou cantando com ele Força estranha, música composta por Caetano para Roberto em 1978, depois de um encontro numa emissora de TV, ocasião em que o Rei mandou a frase premonitória: “É, bicho, artista nunca envelhece”.

Em seguida, Mumuzinho cantou o samba Eu mereço ser feliz, com levada na palma da mão, ampliando o que havia anunciado antes: “Eu represento milhares de cantores jovens negros que moram em lugares humildes”. Outra surpresa positiva foram os arranjos, com mais peso (em metais e guitarra) e mais espaço para brilho dos veteranos da banda RC9.

Claro, nem tudo foram flores. Luisa Sonza, primeira convidada da noite, chegou para entoar Chico (que desde setembro teve a letra alterada para “Se acaso me quiseres”, limando o Chico inspirador), provocando Roberto: “Essa música eu ofereço só pra você!”. A canção, que tentaram desesperadamente vender como bossa, foi entoada de forma inequivocamente não bossa, mais para folk ou mesmo moda sertaneja, com afetação vocal e melismas, zero suingue jazzístico.

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Em clima descontraído, o Rei propôs: “Vamos cantar alguma coisa juntos. Você começa, né?”. E veio Olha, com Luisa vocalmente mais contida, com direito a encostada de cabecinha no ombro de Roberto (sem chorar), e deixa para chamar as atenções para o maestro Eduardo Lage no piano. Anitta fez dueto dessa mesma música com o Rei no especial de 2013, fato que gerou alfinetadas comparativas no mundo insano dos fãs no ex-Twitter.

“Que que eu tenho que fazer mesmo agora?”, perguntou o Rei, na sequência, brincando com um eventual “esquecimento” (um “senior moment”, como dizem os americanos). E emendou esperto no suinguezinho orquestral de Além do Horizonte.

O segundo convidado da noite foi recebido no mesmo esquema “natural” (com aspas) de “ensaio aberto” (mais aspas), combinando entradas e deixas. Fábio Jr., 70 anos completos em 21 de novembro, chegou para cantar Meus Vinte e Poucos Anos, clássico pop lançado em 1979, e emocionou demais, bicho. Roberto se antecipou e brincou com a ironia etária explícita, comentando no dueto: “Faz tempo!”.

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Os dois monstros sagrados da canção romântica brasileira se entenderam bem no que pode ser definido como o momento mais “orgânico” do especial. Não faltou, antes da troca de “Briga-dú!” e “Obriga-dú!”, um dueto em É Preciso Saber Viver e um afago final à aparência do eterno galã, comentando, lógico, a idade supostamente não aparentada: “Que bom que nao parece, né, bicho?”.

Ana Castela, sensação do ano, mostrou boa presença no look/cosplay country e cantou seu hit Solteiro Forçado, praticamente uma balada com inflexões coldplayanas (sem trocadilho). Depois pescou uma ótima lembrança do tesouro do repertório do Rei, Como vai você (o clássico de Antonio Marcos (1945-1992) gravado por Roberto Carlos em 1972. Com direito a sax devaneante de Clécio Fortuna, que toca com o Rei há mais de meio século, o dueto deu liga.

Com Jão, a química não funcionou tão bem. E nem foi porque ele começou com seu hit Me Lambe; o Rei, bem tiozão, até pediu “fica à vontade”. Mas ficou esquisito É Proibido Fumar, com dois se alternando nos versos. Menos mal que havia Paulinho Ferreira mandando brasa na guitarra.

Nas interações com o humorista Paulo Vieira, a melhor tirada foi a pergunta: “Tu já mandou nude, Roberto?”. O Rei respondeu “ainda não”, e foi aconselhado a trocar a rosa enviada a partir de um QR code na tela da TV por imagens mais picantes. Já pensou, bicho?

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No final, com concordância “afetiva” — “a musa desta canção são vocês” —, Roberto Carlos introduziu sua música nova, lançada oficialmente há um mês, Eu ofereço flores. É uma caçulinha com cara idosa, nascida envelhecida tal qual o Benjamin Button do conto de F. Scott Fitzgerald. Tristonha e açucarada demais, porém com gratidão genuína: “Olhares e sorrisos/ me dão o que eu preciso/ sentir nesses momentos/ no coração e na alma/ o aplauso que me acalma/ E alívio aos sentimentos”. O show ainda não terminou, e quem oferece as flores em vida é o artista, não o público, antes de terminar com seus votos de “muita paz, muito amor, muitas felicidades” e “amém, amém, amém”.

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