O tempo passou, e o ageísmo contracultural (“espero morrer antes de ficar velho”, escreveu Pete Townshend, do Who, lá pelos 20 anos, em 1965) envelheceu mal pra xuxu. Também não passa nada bem sua vertente mais rockista — aquele papo de “é melhor queimar do que desbotar”, do Neil Young, em 1978, que ecoou no bilhete de suicído de Kurt Cobain, em 1994. Agora, os Rolling Stones sobreviventes estão lançando nesta sexta-feira, 20 de outubro, seu primeiro álbum com material inédito após 18 anos, e quase todas as críticas, superpositivas, passam pelo tema idade, bicho!
Claro, é impossível desviar da geriatria quando se olha a ficha técnica e estão lá Mick Jagger, 80, e os guitarristas Keith Richards, 79, e Ronnie Wood, 76 anos, com seus acompanhantes — com trocadilho, por favor — Darryl Jones, 61, e Steve Jordan, 66, ao baixo e bateria, respectivamente.
Ouça ‘Hackney Diamonds’ abaixo e siga lendo a crítica a seguir:
Mas seria extremamente injusto tornar essa a pauta principal para leitura de uma obra como Hackney Diamonds, com tanto a oferecer em 2023 e, pode crer, pelas próximas décadas também. O título poderia ser traduzido para o “brasileiro” como “Joias do Tatuapé”, o bairro paulistano com estatística mais alta de roubos e furtos de veículos. Por muito tempo, Hackney, no leste de Londres, teve má reputação por crimes do gênero; seus “diamantes” eram os estilhaços de vidro deixados pelo chão a cada janela de carro estourada.
Com essa gíria malaca, mas um tanto quanto vintage — Hackney passou por um processo de gentrificação após os Jogos Olímpicos de 2012 —, o trio de milionários ingleses juntou 12 músicas (11 inéditas) em uma obra em que a multiplicidade supera a coesão, oferecendo mais do mesmo. Só que, no caso, é mais daquele mesmo que, no milênio passado, reputou The Rolling Stones como melhor banda de rock do mundo: riffs sujos, senso rítmico envolvente, diálogos maliciosos entre guitarras e grandes performances vocais. E isso, como exclamaria um ícone cultural baiano, é magnífico!
Hackney Diamonds tem um quê de saudosismo, tem frustração, sentimentos e ressentimentos de tiozão; tem escapismo para uma certa “América profunda” idealizada, tem também humor, entretenimento, poesia, porrada e algo preciosíssimo chamado transcendência.
O produtor Andrew Watt, 32 anos, foi chamado, segundo Jagger, para chicotear a banda e extrair seu melhor. As três primeiras músicas do álbum tem seu nome entre os créditos de composição. No entanto, sem subestimar o papel do jovem americano que deu ao mundo hits de Camila Cabello, Selena Gomez, Rita Ora e Justin Bieber, parece evidente que a morte de Charlie Watts, em agosto de 2021, tem importante parcela de responsabilidade nessa “reação” stoneana.
O relógio biológico se somou a uma questão moral: seria indigno continuar a carreira da banda sem Charlie para lançar um disco meia-boca. Mick, Keith e Ronnie trabalharam com esse adicional vergonha na cara e recuperaram, de uma forma ou de outra, a danada da urgência.
Na abertura, Angry, o primeiro single, tem apelo pop, batida irresistível, um pequeno grande solo de guitarra, sujinho e despretensioso, e Mick uivando gloriosamente (“como um embaixador da marca Viagra”, zoou o crítico inglês do The Independent) enquanto solicita que sua interlocutora não cuspa na sua cara.
Na segunda faixa, Get Close, o refrão não funciona tão bem, mas vale a eficiência do que é claramente uma continuação da clássica Slave (de Tatoo You), com seus charmosos soluços rítmicos, o piano de Elton John e um solo de sax que faz a alegria dos fãs do saudoso Bobby Keys (1943-2014). A terceira, Depending on You, também co-assinada por Watt, é um exemplo do que o bom acabamento pode proporcionar a uma canção do tipo que os Stones já fizeram aos borbotões.
Nem tudo é joia no repertório. Whole Wide World, por exemplo, com Mick soltando o sotaque londrino, se aproxima de um certo espírito das bandas deste milênio, sem superar a funcionalidade do rock entretenimento da era Foo Fighters.
O country blues rural Dreamy Skies, com slide, rabeca e gaita, evoca graciosamente um deslocamento do contemporâneo, citando botecos honk tonk onde toca Hank Williams. Mas não cumpre todas as suas possibilidades. Talvez tenha faltado mais Keith.
Em seu momento de brilho frontal, Tell Me Straight, o guittarrista canta bem, mas a balada ganha um brilho e uma grandiloquência mais afeitos ao rádio dos anos 80. Watt errou a mão no polimento.
A mística de Richards está inteira em sua primeira parceria “face to face” com Jagger em décadas: Driving Me Too Hard tem um belíssimo riff que é claro descendente de Tumbling Dice, clássico de Exile on Main Street, e faz a festa dos velhos fãs com um aceno a outra faixa do mesmo disco de 1972, Soul Survivor.
O quentinho maior no coração de stonemaníacos surge nas duas faixas com Charlie Watts. Mess It Up, com sabor pop, concilia a caixa e o chimbau inconfundíveis do baterista com um riff típico de Keith Richards... e na parte B se aventura por terrenos off-stoneanos, com vocais de apoio e guitarras funky surpreendentes.
Live By The Sword vai mais longe na nostalgia, juntando Charlie com o baixo de Bill Wyman, que não aparecia num disco dos Stones desde 1991, e ainda trazendo mais Elton John de bônus.
O momento histórico do álbum, porém, é Bite Your Head Off, praticamente um punk rock, que conta com ninguém menos que Paul McCartney no baixo (deliciosamente estouradinho, distorcido) e um diálogo faiscante de Keith e Ronnie. A ironia das ironias é que a melodia remete direto a um clássico dos Sex Pistols, Liar. Steve Jones curtiu isso.
E há que se mencionar o clássico instantâneo Sweet Sounds of Heaven, a essa altura já bem conhecido e dissecado. Quem poderia imaginar que, em 2023, seria possível encontrar transcendência numa faixa com feat. de Lady Gaga? Mas é isso que acontece. E, em meio à contribuição milionária de Stevie Wonder e Gaga, Mick Jagger mostra porque é um gigante.
Caso o ouvinte chege até o fim sem ter se convertido, há o fecho conceitual anacronicamente revolucionário, com Mick e Keith tocando o blues de Muddy Waters que inspirou o nome da banda. Dois velhos safados cantando o clássico lúbrico, originalmente sobre um bagrinho que queria ser pescado por todas as mulheres.
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